Por Paulo Ribeiro
Teólogo e articulista do blogSF
A Bíblia Sagrada, principal fundamento da teologia cristã, é de vital importância para os filhos de Deus. Tal assertiva, desde o século primeiro, foi tão firmemente estabelecida que hoje, dificilmente, algum cristão minimamente maduro ousaria contestá-la. Ademais, sabemos que esta importância, atribuída à Bíblia, reside quase exclusivamente em sua mensagem. A despeito das imensuráveis contribuições da revelação bíblica no campo da história, da arqueologia, da antropologia, das ciências da religião e de outros ramos do saber, o principal mérito da Escritura encontra-se em seu discurso salvífico (Rm 15.4).
Quando se fixa esta verdade acerca dos propósitos da revelação escriturística, se estabelece, por consequência, o fato de que uma correta interpretação da Bíblia é tão importante quanto sua mensagem. Afinal, se a principal riqueza da Bíblia consiste na revelação do Deus verdadeiro, a correta interpretação do discurso bíblico proporciona o correto entendimento referente a Deus e, em última análise, nos direciona a um íntegro relacionamento com Ele.
Com essas considerações em mente, adentraremos no tema da hermenêutica: a ciência e a arte da interpretação. E, pela hermenêutica, defenderemos um modelo de interpretação que parece ter sido relegado ao ostracismo: a interpretação teológica das Escrituras.
Pressupostos para a interpretação teológica das Escrituras
O liberalismo teológico e a posição neo-ortodoxa acerca da natureza da Bíblia causaram profundo impacto no campo da hermenêutica. E esse impacto ressoou na prática interpretativa dos exegetas fundamentalistas.
Para contornar os estragos causados pelas opiniões desses grupos sobre como se deveria interpretar as Escrituras, os teólogos ortodoxos aderiram, inflexivelmente e exclusivamente às categorias histórico-gramaticais de interpretação.
De fato, as contribuições dos métodos histórico-gramaticais são reconhecidas e absolutamente necessárias e não poderiam ser ressaltadas o suficiente neste artigo. Até mesmo teólogos que podemos considerar herdeiros do pós-modernismo são capazes de reconhecer a validade de tais métodos.
Todavia, a exclusiva utilização de categorias histórico-gramaticais na interpretação da Escritura reduz dela um aspecto que não deveria ser ignorado: sua unidade fundamental. O fato de que as laudas bíblicas serem compostas, em última análise, por Deus, constituindo-se, portanto, em uma obra essencialmente singular, faz que o labor hermenêutico, referente a essa mesma obra, deva contemplar técnicas que respeitem sua natureza. Louis Berkhof diz que a "Escritura contém muita coisa que não encontra explicações na história nem nos autores secundários, mas tão-somente em Deus, como o Auctor primarius".
Dessa forma, o fato de a Bíblia existir como uma unidade, composta por um só autor, nos constrange a considerar determinadas qualidades em sua interpretação, qualidades que não podem ser explicadas por nenhuma outra abordagem na tarefa interpretativa. Como nos diz Berkhof: "As considerações puramente psicológicas e históricas não explicarão os seguintes fatos: que a Bíblia é a Palavra de Deus; que ela constitui um todo orgânico, do qual cada livro individual é uma parte integral; que o Antigo e o Novo Testamentos estão relacionados um com o outro como tipo e antítipo, profecia e cumprimento, embrião e desenvolvimento perfeito; e que não só as declarações da Bíblia, mas também o que pode ser deduzido a partir dela pela lógica, constitui a Palavra de Deus".
Portanto, a unidade fundamental da Escritura representa um vigoroso argumento para a utilização de categorias teológicas em sua interpretação. No entanto, em que consistem essas categorias?
Os elementos da interpretação teológica
Alguns elementos perfazem, em termos conceituais, o conjunto de ferramentas utilizadas na interpretação teológica da Bíblia. Dois deles, talvez os mais importantes, são a analogia das Escrituras e a analogia da fé.
A analogia das Escrituras consiste em uma ferramenta hermenêutica por meio da qual consideramos os textos a serem interpretados à luz do conjunto canônico anterior a eles, visando analisá-los sob perspectivas teológicas.
W. C. Kaiser Jr. e Moisés Silva, citando as considerações de Bright, autor do The Authority of the Old Testament [A autoridade do Antigo Testamento], dizem: "Foi John Bright quem observou que a maioria das passagens bíblicas possui algum aspecto teológico expressado de maneira que transforma a passagem em uma parte do tecido da Bíblia como um todo. E, ilustrando quais seriam as expressões desse 'aspecto teológico', mencionam as indicações de uma teologia anterior dentro do texto, como 'o uso de certos termos que já adquiriram um significado especial dentro das Escrituras' (e.g., servo, semente, Israel, etc), além do 'uso de citações de escritores que precederam o texto examinado'". Outras expressões do citado aspecto teológico são trazidas também por Kaiser e Silva.
Portanto, a utilização do conceito de analogia das Escrituras nos permite, em coerência com o pressuposto da unidade fundamental da Bíblia, considerar cada texto a ser interpretado em relação intrínseca com o conteúdo escriturístico anterior a ele.
Contudo, embora o uso da analogia das Escrituras constitua-se em uma grande ferramenta para a interpretação teológica da Bíblia, ele - somente - não esgota as premissas por trás da analogia da fé, que considera não apenas o montante canônico anterior ao texto, mas a totalidade do cânon.
Com efeito, a analogia da fé representa, assim, a maior ferramenta teológica da tarefa hermenêutica. O conceito de analogia da fé, analisando-o em suas origens, vem da sentença de Romanos 12.6: "Tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da [nossa] fé".
A despeito dos diferentes pontos de vista comumente estabelecidos na interpretação deste versículo, a expressão de sentido defendia por nós é a de que Paulo, apesar de ignorar as técnicas hermenêuticas disponíveis no século 21, estava simplesmente se referindo ao princípio de "comparar as Escrituras com as Escrituras".
Dessa maneira, a própria Bíblia nos fornece o princípio pelo qual se justifica a necessidade de uma abordagem teológica em sua interpretação: se toda a Bíblia é a Palavra de Deus, e não apenas alguns livros ou passagens, é justo que, ao nos lançarmos na exegese de determinada perícope, a consideremos à luz da totalidade da revelação bíblica e não somente do conteúdo escriturístico anterior a ela. É necessário considerarmos, na exegese de cada passagem, o cânon definitivo das Escrituras.
Convencidos da importância de uma interpretação teológica das Escrituras, devemos, neste ponto, nos perguntar quais as consequências do uso da analogia da fé para nossa teologia.
Consequências da interpretação teológica
Diante do princípio da analogia da fé, pelo qual supomos uma única Mente governante como autora sobre a Escritura, alguns resultados devem ser considerados. Um desses resultados é o fato de que a Escritura possui, em muitas de suas partes, um sentido místico.
Berkhof nos explica que "certas partes da Escritura têm um sentido místico que, neste caso, não constitui num segundo sentido, mas no sentido real da Palavra de Deus". Obviamente, portanto, existe aqui uma dicotomia entre a consideração de um sentido místico, como único sentido para determinadas passagens bíblicas, e a medieval interpretação quádrupla, que enxergava quatro sentidos simultâneos em toda a Escritura.
A interpretação quádrupla da Idade Média
"A hermenêutica alegórica prevaleceu durante toda a Idade Média, especialmente em sua forma quádrupla. Sua origem é, provavelmente, o sistema hermenêutico de Agostinho. Segundo esse método, as passagens das Escrituras teriam quatro sentidos: um literal e três espirituais: moral, alegórico e anagógico. O sentido literal seria o registro do que aconteceu (o fato); o sentido moral conteria uma exortação à conduta (o que fazer); o sentido alegórico ensinaria uma doutrina a ser crida (o que crer); e o sentido anagógico apontaria para uma promessa a ser cumprida (o que esperar). Assim, uma referência bíblica sobre a água teria um sentido literal (a água), um sentido moral (exortação a uma vida pura), um sentido alegórico (o sacramento do batismo) e um sentido anagógico (a água da vida na Nova Jerusalém).
A natureza mística da Escritura se caracteriza, principalmente, pelo efeito de que os fatos ou acontecimentos históricos podem servir ora como símbolos, ora como tipos de uma verdade espiritual. Um exemplo desse caráter simbólico da Escritura pode ser visto na luta de Jacó com o anjo, registrada em Gênesis 32.24-32, cujo significado, essencialmente simbólico, reside no fato de que, ao buscar sucesso mediante astúcia e esforço pessoal na "luta" com Deus, Jacó ficou incapacitado, aprendendo, posteriormente, que a resistência a Deus era inútil e que, para obter o favor de Javé, clamar por sua graça seria o melhor caminho.
Outra consequência do uso da analogia da fé na interpretação da Escritura seria a conclusão de que Israel não é, como etnia, uma nação especialmente endereçada pela graça de Deus, já que "judeu é quem o é interiormente" (Rm 2.29). Antes, a nação de Israel é um símbolo, símbolo de um povo único - a Igreja - que, eleito por Deus, em todas as eras, desfruta de sua graça salvadora.
Dessa forma, o caráter místico da Escritura é revelado mediante a existência de tipos e símbolos em toda a narrativa bíblica. E, sendo, nestes casos, a interpretação mística vetora do único sentido de determinadas passagens, conclui-se, com propriedade, que a utilização da analogia da fé é vital para se alcançar o verdadeiro significado de determinados textos.
Por fim, resta-nos abordar, de forma concisa, algumas elaborações práticas que servem como diretrizes para uma interpretação teológica da Palavra de Deus.
Pautas para a interpretação teológica da Bíblia
Em primeiro lugar, devemos estabelecer que a exegese é antes de qualquer sistema de teologia. Isso não significa que uma abordagem teológica do texto deverá ser feita somente caso não seja possível encontrar sentido sem ela, como preconiza E. Lund. Ao contrário, o uso de diferentes categorias na interpretação dos textos deve ser subsequente; cada método ampliando e estendendo a compreensão dos textos cujas mensagens estão sendo extraídas.
Consecutivamente, os assentamentos da fé devem consistir em âncoras para a interpretação teológica. Esses "assentamentos" são, na hermenêutica, passagens bastante claras e suficientemente extensas, que tratam tão didaticamente de determinados assuntos que devem ser utilizadas como base para o entendimento dos mesmos assuntos em passagens cujos significados estão menos evidentes. Servem, também, de fundamento sólido para estabelecer as demais doutrinas bíblicas.
Considerando isso, qualquer abordagem teológica das Escrituras deve estar sujeita à clareza e à extensão de determinadas passagens que encerram as doutrinas pilares do cristianismo. Além disso, como consequência direta dessa pauta de interpretação em particular, podemos postular que somente aquilo que é ensinado de forma clara, inequívoca e ausente de ambiguidades pode constranger a consciência do cristão. Em outras palavras, nenhuma doutrina que constranja a consciência do crente a algo deve ser estabelecida com base em conclusões particulares. Interpretações humanas elevadas ao nível de "escritura" devem ser veementemente evitadas.
Em terceiro lugar, devemos estar atentos ao que está implícito na Escritura. Nem todas as verdades que constam na Bíblia Sagrada são expressas de maneira clara em enunciados formais. Um exemplo desse fato pode ser encontrado na própria doutrina da Trindade, que, embora não esteja explicitada da forma como a conhecemos em nenhum texto bíblico, pode ser deduzida da Escritura a partir da lógica. Dessa forma, temos que as conclusões doutrinárias lógica e responsavelmente estabelecidas a partir de textos bíblicos, se verdadeiramente deduzidas, fazem parte do pensamento de Deus e de sua revelação, tanto quanto as declarações do próprio texto.
Por fim, mais do que a mera consulta, a congruência de passagens paralelas (as que tratam do mesmo assunto) deve ser empreendida, para que se possa entender corretamente o pensamento de Deus sobre determinado assunto. Somente encerrando em declarações formais tudo o que a Bíblia diz sobre qualquer assunto é que se torna possível estabelecer qualquer doutrina ou pensamento divino.
Concluímos, assim, que a utilização de categorias teológicas na tarefa interpretativa é absolutamente necessária para o labor hermenêutico. Este, por ser tão importante em todas as questões da vida cristã, não deve ser empobrecido pelo uso exclusivo de métodos histórico-gramaticais. Se a Bíblia é um livro divino, deve também ser interpretada teologicamente.
"Somente aquilo que é ensinado de forma clara, inequívoca e ausente de ambiguidades pode constranger a consciência do cristão"
"Nenhuma doutrina que constranja a consciência do crente a algo deve ser estabelecida com base em conclusões particulares"
Notas:
1 Croatto, J. S., por exemplo, qualificou os benefícios das técnicas histórico-gramaticais como "indiscutíveis". CROATTO, J. S. Hermenêutica bíblica: para uma teoria da leitura como produção de significado. São Paulo: Paulinas, 1996, p. 10.
2 BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 1932, p. 101.
3 Ibid.
4 KAISER, W. C. Jr.; SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 189.
5 BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 1932, p. 106.
6 4 F. F. Bruce, "The History of New Testament Study", em New Testament Interpretation: Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 28.
7 BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 1932, p. 108.
8 LUND, E.; NELSON, P. C. Hermenêutica: princípios de interpretação das Sagradas Escrituras. São Paulo: Editora Vida, 2006, p.28, 91.
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