O povo Aranã é identificado na região do Vale do Jequitinhonha pelas denominações genéricas "índio" e "caboclo", que constituem o sobrenome e o apelido, respectivamente, das duas famílias que compõem o grupo. A inserção dos Aranã no movimento indígena e sua busca pela identificação étnica é recente, datando do final da década de 1990.
O índio tem três vezes parte do Brasil. A primeira parte é essa que eles são nacionais daqui. Quando os brancos chegaram aqui já achou os índios. A segunda parte foi essa que eles queriam expulsar os índios daqui (...); mataram, bateram, espancaram... mas eles não tinham para onde ir, conseguiram ficar desse mesmo jeito, não é? A terceira parte foi a mistura, e que deu a maior confusão no Brasil, porque os brancos pegaram as mulheres índias e estupravam. Nascia um índio cruzado com branco, um louro, igual essa menina ali. Ela é índia, mas é loira. Então, de onde vem essa loura, se índio não é loiro?... Então, assim continua a história e os brancos estupravam as moças, as mulheres, nascia diferente e as mães aconselhavam os filhos, não é? Então, 'vê se mistura aí' e tal... Até hoje tem muitas pessoas que são índias, mas é brancoPalavras de Antonio Aranã, Fazenda Campo, 15/07/2001
Localização e população
Os Aranã se apresentam dispersos em várias áreas rurais e urbanas dos estados de Minas Gerais e São Paulo. Contudo, o grupo possui maior concentração familiar nas áreas urbanas e rurais dos municípios de Araçuaí e Coronel Murta, no Vale do Jequitinhonha (MG).
As fazendas Campo, Alagadiço, Lorena, Cristal e Vereda são as principais localidades rurais ocupadas pelos Aranã, sendo que na Fazenda Alagadiço há maior concentração de famílias em função da Diocese de Araçuaí ter doado glebas de terra para alguns posseiros na década de 1980. As cidades de Araçuaí, Coronel Murta, Pará de Minas, Juatuba, Betim, Belo Horizonte e São Paulo são as principais áreas urbanas ocupadas pelos Aranã.
Com base em levantamento preliminar realizado em 2000, pelo Conselho Indígena Aranã Pedro Sangê (CIAPS), o povo Aranã ultrapassa o número de 30 famílias.
História e etnogênese
A inserção dos Aranã no movimento indígena e sua busca pela identificação étnica é recente, datando do final da década de 1990, após um grupo familiar da etnia Pankararu, originário de Pernambuco, ter migrado para a Fazenda Alagadiço, município de Coronel Murta, ocupando terra doada pela Diocese de Araçuaí, onde moram algumas famílias aranã.
Até antes da chegada dos Pankararu, o grupo indígena era conhecido pelas denominações Índio e Caboclo do Jequitinhonha. O convívio com os indígenas de Pernambuco, que participavam do movimento e da luta pelos direitos indígenas, estimularam o desejo antigo do grupo de investigação sobre sua origem étnica. Particularmente, o convívio com os Pankararu foi despertando nessas famílias indígenas a reflexão sobre sua condição social e histórica. Num processo crescente de revalorização de sua identidade étnica, esse grupo indígena buscou o apoio da organização não governamental CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) para desvelar sua origem e lutar por seus direitos.
De acordo com Dona Rosa Índia, presidente do CIAPS (Conselho Indígena Aranã Pedro Sangê), o desejo de saber a qual povo étnico pertencia sua família sempre existiu. Entretanto, com a presença dos Pankararu e com o apoio da indigenista Geralda Soares e da antropóloga Izabel Mattos seu povo conseguiu o apoio necessário para investigar e descobrir sua origem étnica.
O etnônimo Aranã
A historiografia oficial aponta para a extinção do povo Aranã ainda no século XIX. Contudo, o grupo Aranã contemporâneo remonta sua história a partir de um ancestral -Manoel Índio (também referido como Manoel Caboclo), que foi, segundo a memória oral de seus descendentes, um dos indígenas aldeados em Itambacuri, região do Vale do Rio Mucuri, Minas Gerais.
Em pesquisa nos arquivos do aldeamento capuchinho de Nossa Senhora da Conceição de Itambacuri, a antropóloga Izabel Missagia Mattos localizou registro de Manoel Índio de Souza, identificado como índio Aranã, subgrupo dos famosos Botucudo.
De acordo com a pesquisa documental realizada por Mattos, consta no Livro de Matrícula das Alunas do Colégio Santa Clara, aldeamento de Itambacuri, ano 1918, o registro da aluna Idalina Índia dos Santos, filha de Manoel Índio de Souza, falecido (Livro ano 1908/1927, p. 29). Ainda no mesmo livro de matrícula, todavia em documento datado de 1923, o registro de Idalina Índia dos Santos sofre o acréscimo da sua identificação étnica: Aranã. Estes dados sugerem a possibilidade de o citado Manoel Índio de Souza ser o mesmo Manoel presente na memória oral do grupo familiar Índio.
Mattos (2002a), que compulsou sistematicamente a documentação referente aos aldeados de Itambacuri, informa não ter encontrado o sobrenome Índio associado a quaisquer outras designações étnicas que não Aranã. A relação entre o patronímico Índio e o etnônimo Aranã é reforçada por outra pesquisa documental, realizada pelo professor e historiador José Carlos Machado, na Paróquia de Capelinha. Consta no Livro de Casamento nº 1 da referida Paróquia, registro nº140, p. 203, que:
Aos vinte e um de outubro de mil oitocentos e oitenta e seis, dispensados por mim das três denunciações canônicas, servi de poderes delegados pelo Revmº Sr. Bispo Diocesano, na Capela de Santo Antônio do Surubim, em minha presença e das testemunhas Santos Alves dos Santos e Lucas Pereira de Souza, se receberam em matrimônio Manoel Miguel e Claudiana, índios, ele filho de Miguel Índio, e natural das matas do Surubim, tribo dos Aranã, e ela filha de Joaquim Gomes, índio, e de Luzia, índia, e natural das matas do Bonito. Dei-lhes as bênçãos nupciais. Os nubentes reconheceram como seus filhos Salvina e Delfina, os quais declarei legitimados pelo matrimônio subseqüente. Para constar, faço este assento. O Vigário João Antônio Pimenta.
Apesar dos documentos acima citados apontarem para a possível origem social do grupo em questão, não há necessariamente uma "continuidade histórica" direta entre os Aranã de Itambacuri e os Aranã do Vale do Jequitinhonha.
Os Índio e Caboclo do Jequitinhonha ou Aranã atuais, em processo de emergência étnica, constituíram-se através de um longo processo de aliança e hibridação entre duas principais famílias de origem indígena, na qual apenas uma delas remonta seu passado ao aldeamento missionário de Itambacuri.
Contudo, a forte referência ao aldeamento de Itambacuri e os dados de pesquisa sobre a possível vinculação do sobrenome Índio com o etnônimo Aranã fez com que o grupo, como um todo, num processo dinâmico de busca de sua origem étnica, se identificasse com a história "oficial" do povo Aranã.
Ao remeterem a origem do grupo ao aldeamento de Itambacuri e à ocupação indígena na região do Vale do Jequitinhonha, a história de constituição dos Aranã caracteriza-se pela união entre grupos com origem indígena que foram levados para cidades e fazendas da região e que, ao longo do século XX, constituíram-se como comunidade que traz consigo a consciência da origem indígena.
Assim, mais do que uma identificação genérica, as denominações "índio" e "caboclo" configuram-se, no caso aranã, como patronímico (sobrenome oficial), no caso da família Índio, e como "patromínico apelido" (Mattos, 2002b), no caso da família Caboclo. Para as famílias aranã que possuem o sobrenome Índio, este simboliza, para elas, a "prova" da identidade indígena, a marca da diferença. Já a denominação Caboclo, que não se configura propriamente como patronímico, está, entretanto, tão fortemente presente na identificação intra e extra grupal que podemos entendê-la como um "patronímico apelido".
Os patriarcas
De acordo com sua memória oral, o principal ancestral dos Aranã contemporâneos, Manoel Índio ou Manoel Caboclo, teria sido "adquirido" por um grande fazendeiro da região do médio Jequitinhonha e residido na pequena cidade de Virgem da Lapa, onde ficou conhecido por exercer a atividade de tropeiro. Para os Aranã, Manoel estabelece o elo de ligação histórica entre a "vida no mato" e a "vida nas cidades" do seu povo.
Segundo o Senhor Jumá Índio, neto de Manoel, seu avô foi "pego no mato", na região de Itambacuri, já adulto. A imagem de Manoel Índio é associada, pelos Aranã, à imagem de "índio bravo", "índio do mato". Todavia, capturado e levado para o aldeamento de Itambacuri e depois para trabalhar para a família Murta, Manoel teria vivido grande parte de sua vida distante de seu povo e sob regime de trabalho escravo, na região da cidade de Virgem da Lapa.
Vítima de um processo de desenraizamento imposto, Manoel teria se casado com Isabel, que, segundo a memória oral aranã, seria também indígena de Itambacuri. Segundo o Senhor Jumá, Manoel e Isabel teriam tido três filhos, sendo o caçula, Pedro Inácio Figueiredo, o patriarca dos atuais Aranã do Vale do Jequitinhonha. Jumá diz não ter conhecido os irmãos de seu pai, apesar de saber que eles viveram em Virgem da Lapa, tornando-se conhecidos na região pelo apelido de "Boquinha" ou "Boquim", expressão advinda provavelmente da palavra caboclo, e pela qual era conhecido inclusive Manoel.
Segundo informações dos Aranã e breve pesquisa documental realizada pela equipe do CEDEFES, ANAI (Associação Nacional de Ação Indigenista) e PRMG (Procuradoria da República em Minas Gerais) em Virgem da Lapa, o patronímico Índio não se faz presente no registro oficial dos descendentes de Manoel Índio, que, ao que tudo indica, recebeu em seus registros oficiais o sobrenome do patrão, prática muito comum à época.
O herói cultural Pedro Sangê
Pedro Inácio Figueiredo, Pedro Inácio Izidoro ou Pedro Sangê, como ficou conhecido na região, provavelmente nasceu no ano de 1883, na Fazenda Alagadiço, tendo falecido no final da década de 1960. Pedro Sangê viveu a maior parte de sua vida trabalhando para a tradicional família Figueiredo Murta, que lhe possibilitou o acesso à educação formal. Segundo seus descendentes, Pedro nunca se dedicou ao trabalho agrícola ou à pecuária. Casou-se duas vezes e teve 13 filhos, todos com o sobrenome Índio.
A admiração por Pedro Sangê é grande entre os Aranã. Seus filhos não conseguem findar a lista de qualidades e apelidos do pai reconhecidos pela população local. Segundo sua filha caçula, Rosa, seu pai possuía grande espiritualidade e religiosidade, o que foi responsável por vários de seus apelidos, inclusive o de Pedro Conselheiro. Referência também para a arte de cozinhar e para confeccionar artesanato em couro, ele era chamado por vários fazendeiros para prestar serviços temporários.
O fato de ter sido alfabetizado e de desenvolver atividades artesanais certamente fez com que Pedro Sangê se destacasse no contexto da população trabalhadora regional; bem como o seu forte vínculo com a Igreja Católica e sua proximidade com os padres. Estas características, somadas às suas outras habilidades e à sua aparente negação à realização de trabalhos agrícolas, parecem lhe ter proporcionado, em sua juventude, uma vida independente e errante pelas fazendas da região. Contudo, após seu segundo casamento, os nascimentos dos seus filhos, com limitações advindas de problemas de saúde e idade, entre outros, Pedro se fixou na Fazenda Campo. Lá ocupava, provavelmente, uma função de administrador. Contudo, uma de suas principais tarefas era a de ler diariamente livros de literatura e jornais para seu patrão, Senhor Miguel Izidoro Murta, que perdera a visão aos 25 anos de idade. Atividade pouco comum, essa responsabilidade Pedro Sangê só deixou de exercer quando também perdeu a visão. Sob diferentes alegações, os descendentes de Pedro Sangê associam sua deficiência visual à de seu patriarca.
Contudo, vale salientar que, apesar da deficiência visual, Pedro Sangê continuou trabalhando na fazenda e exercendo seu papel de líder, permanecendo como uma referência para a vida de sua comunidade. Capaz de agregar seus descendentes, ele se transformou numa figura heróica para os Aranã por sua personalidade.
Apesar da identidade indígena do grupo se apresentar fortemente relacionada com o sobrenome Índio, os Aranã ressaltam que seu povo não se restringe à história do grupo familiar Índio. Os Aranã atuais constituíram-se através de um processo de aliança entre as famílias Índio e Caboclo, como ressalta Tião Caboclo:
Tem muitas famílias aqui (...). Fora isso, tem a família Caboclo e a família Sangê, mas o povo é um só.É... O nome Aranã eu acho que pode ser o povo Aranã; a família é diferente. A família pode ser família Cabocla, família Sangê... igual tem família Sangê... Agora o povo é Aranã.(Fazenda Taquaral, reunião com os Aranã, 31/03/2001)
Segundo o Senhor Jumá e Dona Terezinha, filhos de Pedro Sangê, a união entre as famílias Caboclo e Índio teve início quando do casamento de seus pais, Pedro Sangê e Maria Rosa das Neves. Maria teria nascido na Fazenda Alagadiço, no ano de 1910, conforme sua certidão de casamento com Pedro Sangê, pertencendo ao grupo familiar Caboclo.
Contudo, teria sido na Fazenda Campo, local onde nasceram todos os filhos do casamento de Pedro Sangê e Maria Rosa, que o processo de aliança entre as famílias Caboclo e Índio intensificou-se, ainda no início do século XX.
A família Caboclo remete seu passado indígena à região de Coronel Murta. Segundo o octogenário Senhor Hildebrando Freire Figueiredo Murta, quando a cidade foi fundada por sua família, era de conhecimento de todos a presença indígena na região. Os índios eram identificados pelas denominações genéricas de Tapuia e/ou Tocoiós, sendo esta última designação relativa ao aldeamento existente na região no século XVIII.
De acordo com Dona Luzia Cabocla, principal guardiã da memória oral do grupo familiar, a história de sua família remonta ao processo de miscigenação entre índios, negros e brancos trabalhadores da região de Coronel Murta. As fazendas Vereda, Cristal e Alagadiço, próximas ao aldeamento de Lorena de Tocoiós, configuram-se como principais locais de referência da presença dos Caboclo.
Para os Caboclo, a origem indígena remete a um passado mais distante que aquele reportado pela família Índio, algo em torno de quatro gerações passadas. A família Caboclo traz consigo, de forma mais acentuada, a idéia de miscigenação. Todavia, refere à origem e identidade indígenas como bases para a ligação e a afinidade com a família Índio. Também para eles, a consciência de um passado comum proporciona um sentimento de pertença de inequívoco apelo étnico.
Organização social
Os Aranã sustentam sua unidade enquanto grupo étnico através de uma regra de descendência que parece privilegiar sempre a inclusão: os filhos de casamentos entre Aranã e não índios parecem ser sempre considerados Aranã. A origem indígena sempre prevalece na identidade dos filhos, independentemente do vínculo étnico apresentar-se ligado à mãe ou ao pai. Este padrão ocorre também nos casamentos entre as famílias Índio e Caboclo: quando um membro da família Caboclo casa-se com um membro da família Índio, os filhos são sempre identificados como Índio; novamente o gênero dos genitores não sendo determinante. Além disto, foi possível perceber que algumas mulheres da família Caboclo ou não índias, ao se unirem a um membro da família Índio, identificam-se, elas próprias, como tais. Torna-se assim compreensível o crescimento populacional recente da comunidade aranã concomitante ao próprio processo de emergência, afirmação e valorização da identidade étnica do grupo.
Pedro Sangê, "índio" sem vínculo societário indígena definido, através do seu olhar para o passado, constituiu as bases de uma comunidade indígena pensada, vivida e sonhada, com uma história própria e com regras específicas de inserção de seus membros. É desta forma que os Aranã se apresentam, enquanto grupo étnico, e que lutam para ser ouvidos e respeitados.
Relação com a terra e com os fazendeiros
O processo de transferência de famílias indígenas para fazendas é fato antigo na história brasileira, definindo de modo preponderante fluxos migratórios e processos de destribalização de inúmeros povos. No caso aranã, sendo a biografia de seus patriarcas, Manoel e Pedro Sangê, diretamente marcada por processos de 'desenraizamento' de suas famílias de origem, e de estabelecimento de vínculos meramente pessoais de dependência com famílias de fazendeiros, seria improvável de se conceber, em tais circunstâncias, o horizonte possível de uma vida em comunidade para os seus descendentes.
Contudo, o povo Aranã se concebe enquanto tal a partir de sua permanência na Fazenda Campo, município de Araçuaí, no início do século XX. O casamento de Pedro Sangê com Maria Rosa das Neves foi uma das principais razões da fixação da família em uma terra e marcou também o início da união entre as famílias Índio e Caboclo.
Na Fazenda Campo, os Aranã prestavam serviços para o proprietário Senhor Miguel Figueiredo Murta. Apesar de habitarem também a Fazenda Alagadiço e lá ainda prestarem serviços para a família Murta, foi na Fazenda Campo que os Aranã consolidaram uma vida em comunidade mediada pela figura marcante de Pedro Sangê.
A relação com o fazendeiro, velho Miguel, como é lembrado pelos descendentes de Sangê, é descrita como amigável, boa. Segundo eles, enquanto velho Miguel estava vivo, havia alegria e fartura na fazenda. Entretanto, após sua morte, os Aranã relatam as dificuldades vividas na fazenda. Além das condições de assistência à saúde, também o clima e as relações de trabalho foram se deteriorando.
Segundo os Aranã, quando velho Miguel morreu os herdeiros da Fazenda Campo não investiram na propriedade, dividindo-a e vendendo-a para outros fazendeiros da região. A intensificação da seca no Vale do Jequitinhonha, somada à grande distância da fazenda para os centros urbanos para tratamento médico e acesso à educação formal, são identificados nesse momento como os principais fatores que dificultaram a permanência do grupo na área, razões estas que culminaram com a migração de algumas famílias para centros urbanos e fazendas mais próximas das cidades.
O progressivo desencantamento das relações sociais vividas na Fazenda Campo posteriormente às mortes de velho Miguel e de Sangê parece ter resgatado, na memória dos Aranã, a percepção da relação com os fazendeiros como de cativeiro e como fator maior da sua desagregação - características estas que podem remontar a própria história, fundante e emblemática para eles, de Manoel Índio.
A Fazenda Campo situa-se ao lado esquerdo do rio Jequitinhonha, a 15 km do mesmo, em local de difícil acesso, nas microbacias dos rios Santana e Areia. A arqueóloga, Alenice Baeta, em visita ao sítio onde se localizava a sede da fazenda, observou ainda algumas estruturas remanescentes da mesma, tais como: um antigo cemitério, um cruzeiro com alicerce de alvenaria de pedra, fornos, fornalhas, engenho, oficina de farinha e alicerce da sede, dentro outras.
Assim como a Fazenda Campo, a Fazenda Alagadiço também foi de propriedade da família Murta até metade do século XX, quando Dona Mariquinha Murta doou a fazenda para a Diocese de Araçuaí, em 1942. Quando do primeiro casamento de Sangê, no início do século XX, e quando do êxodo da Fazenda Campo, a presença aranã na Fazenda Alagadiço ocorreu de forma preponderante.
A Diocese recebeu a posse da fazenda Alagadiço, mas parece ter desde sempre manifestado dificuldades para gerenciá-la. No início da década de 1980, a Diocese realizou algumas tentativas de transferir glebas de terras para seus agregados, a fim de minimizar os custos. Esse processo envolveu algumas famílias aranã, que apesar da gratidão à Diocese pela doação de terras, manifestam a insuficiência da terra para garantir sua subsistência. São pequenas glebas, em faixas estreitas de terra, onde o acesso à água exige projeto de canalização.
O almejado território
A relação histórica de subordinação aos fazendeiros, a constante migração pelas fazendas e a memória de uma vida em comum, mas repleta de dificuldades na fazenda Campo, faz com que os Aranã possuam uma relação muito específica com a terra. Desde o primeiro contato com a equipe do CEDEFES, os Aranã afirmam que sua luta é para adquirir uma terra para que possam viver coletivamente. Os Aranã que moram em Araçuaí dizem, pelo depoimento de Dona Rosa Aranã, (07/07/2002)
O problema é que a gente não tem terra. A gente está na cidade obrigado. Viver junto é outra coisa. A terra para gente é bem melhor; mais importante que o reconhecimento étnico oficial. Mas tudo volta para o reconhecimento, não é?
O acesso à assistência do poder público, demandada, sobretudo, enquanto assistência aos direitos dos povos indígenas, apresenta-se, para eles, como vinculada ao reconhecimento étnico oficial. Não se percebem, enquanto comunidade, como algo diverso de índios. É o próprio sentimento de indianidade que parece explicar, para si próprios, uma tão premente demanda por uma vida em comum.
A comunidade imaginada pelos Aranã do Jequitinhonha necessita da posse de uma área para estabelecer novo vínculo com a terra. Nessa luta para agregar o seu povo, pouco importa para os Aranã se as famílias moram nas cidades ou nas fazendas. Isto não se constitui como elemento definidor de sua identidade. Para o grupo, laços de parentesco, memória e envolvimento com a luta pela terra são os principais elementos de identificação. No caso aranã, a dimensão utópica da comunidade imaginada define a luta de um povo pelos seus direitos:
Nós somos índios em qualquer lugar. Não importa onde estamos; não importa se somos reconhecidos... A gente se sente diferente dos outros. A maneira de ser da gente é diferente. Não sei, não sei se é... mas a gente sente assim. A gente precisa é estar junto.Dona Rosa Aranã, 07/07/01
No dia 25 de janeiro de 2000, os Aranã enviaram para a Diretoria de Assuntos Fundiários da Funai documento comunicando sua situação e solicitando uma solução para a questão da terra. Neste, os Aranã solicitaram a compra de uma terra para o grupo, mas não obtiveram resposta formal.
Cientes da ausência de referências mínimas de identificação étnica do grupo por parte da Funai, da morosidade dos processos de regularização de Terras Indígenas no Brasil e rejeitando a perspectiva de retorno para a área anteriormente ocupada pelo grupo na Fazenda Campo, os Aranã tentaram buscar alternativas para luta pela terra, iniciando um processo de contato com a Diocese de Araçuaí. Em 2000, perguntaram sobre a possibilidade da diocese doar uma parcela de terra para seu grupo se fixar e poder viver em comunidade na área onde alguns de seus parentes e um grupo Pankararu já possuíam terras. Mas o pedido não foi aceito.
No período de levantamento da história oral aranã, em 2001, o desejo de permanecer na região de Coronel Murta e Araçuaí se configurava como um marco de consenso do grupo. Apesar do intenso e histórico fluxo emigratório, e do fato do grupo ter se constituído enquanto tal em terras compreendidas como grandes fazendas, os Aranã entendiam, naquele período, que foi nessa região que estabeleceram raízes, laços de parentesco, amizades e conhecimentos da terra e da medicina.
Entretanto, com a premência de equacionarem o problema de acesso a terra, os Aranã têm também se mobilizado na busca de soluções alternativas que perpassam, inclusive, pela fixação do grupo em outras localidades da região e pelo recurso a instituições governamentais que não atuam especificamente no campo indigenista, como ITER (Instituto de Terras - poder público estadual) e o poder público municipal de Capelinha.
Alguns Aranã já possuem a posse de pequena gleba de terra na Fazenda Alagadiço e afirmaram, durante o período do trabalho do CEDEFES/ANAI/PRMG, não se imaginarem saindo dessa localidade.
A relação dos Aranã com a sociedade regional é relatada, tanto por parte dos indígenas como dos não índios, como uma relação de amizade. Todavia, depois de deflagrada a luta pela terra, conseqüentemente pelo reconhecimento étnico oficial, os Aranã, principalmente os seus mais velhos, afirmam que a reação da população não foi muito boa. Questionamentos, dúvidas e discriminação teriam marcado a reação da maioria das pessoas, fatos que parecem ter surpreendido negativamente os Aranã.
Para Rosa Aranã, a reação negativa de moradores da região para com seu povo caracteriza-se como um sinal de preocupação dos fazendeiros para com a situação fundiária. Pelo fato de a questão da identidade étnica perpassar pelo direito a terra, a população regional dissemina a dúvida e o descaso quanto à autenticidade da identidade indígena do grupo.
Religião e costumes
Católicos, os Aranã falam com muito orgulho da função de sacristão que Pedro Sangê exerceu na Fazenda Campo. Em regime de mutirão, eles construíram uma capela naquela fazenda, onde até hoje seus filhos e netos realizam cultos para os poucos moradores.
Dona Terezinha, benzedeira que lidera a vida espiritual aranã, se identifica como católica. Responsável pela abertura de todas as reuniões de seu povo, ela benze seus parentes, canta e reza, e seus sonhos são entendidos como sinais divinos.
Antônio e seu filho Raimundo, conhecido como Mundinho, são os principais responsáveis pelas celebrações católicas dos Aranã. Ao acompanhar o grupo, pode-se perceber a grande importância que tem o calendário litúrgico da igreja católica para a organização de suas cerimônias. De forma intensa, reelabora-se, no contexto da vida religiosa dos aranã, significados próprios de práticas católicas de modo a atender a especificidades da identidade indígena.
Dispersas, as famílias aranã têm nos cultos católicos os principais momentos de sociabilidade do grupo. Referem, ainda, os forrós e os jogos de baralho como suas principais fontes de entretenimento.
O chamego, bebida fermentada obtida de um fruto chamado Quiabinho, é tida como específica dos Aranã e um dos seus marcos de identificação étnica, constituindo-se, deste modo, em um importante elemento de integração na vida festiva do grupo. Incorporada e associada aos encontros indígenas, o chamego envolve atividades comunitárias desde o seu preparo, ao qual todos se dedicam. Conversas e brincadeiras muito próprias da convivência aranã permeiam os processos sociais de confecção e de consumo do chamego.
Reconhecimento étnico e participação no movimento indígena
Ao se inserirem no movimento indígena, com apoio do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), do GTME (Grupo de Trabalho Missionário Evangélico) e do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva), os Aranã deram início ao processo de investigação de sua própria história, ampliando seus conhecimentos acerca da realidade indígena no Brasil contemporâneo. Participando das semanas dos Povos Indígenas em Belo Horizonte, das reuniões do Conselho dos Povos Indígenas de Minas Gerais, da Comissão das Mulheres Indígenas do Leste, da Marcha 500 Anos Brasil, entre outros eventos, os Aranã conquistaram seu espaço político e reforçaram a luta dos povos resistentes no país. Histórias foram reacendidas, direitos foram descobertos, projetos de futuro foram redimensionados. O sonho da vida em comunidade ganhou, enfim, perspectivas. Engajados no movimento indígena, os Aranã se organizaram para pesquisar sua história, sua origem étnica e para conquistar seus direitos, sendo o primeiro deles a terra.
Em 19 de outubro de 2000, juntamente com o povo Caxixó, enviaram à Fundação Nacional de Saúde (Funasa) documento solicitando sua inclusão no Programa de Atenção à Saúde do Índio, participação nos encontros de saúde promovidos pelo Distrito Especial de Saúde do Índio, participação nos cursos de formação para agentes indígenas de saúde, valorização de sua medicina tradicional e cumprimento das diretrizes nacionais para o atendimento à saúde indígena. Sem resposta formal da Funasa e cientes de que a não inserção dos Aranã nas políticas públicas referentes aos povos indígenas apoiar-se-ia em alegações quanto à ausência de "reconhecimento étnico oficial" do grupo, os Aranã encaminharam, a 25 de outubro de 2000, novo documento à Procuradoria da República, solicitando parecer da instituição sobre sua "identidade étnica".
Neste mesmo ano, os Aranã solicitaram ao CEDEFES, que possuía um projeto de apoio ao grupo, que seu trabalho pudesse constituir também de uma peça técnica para suporte à inserção aranã nas políticas públicas indigenistas. Em janeiro de 2001, o CEDEFES iniciou os trabalhos referentes ao projeto e, no decorrer do primeiro semestre, em diálogo com a Procuradoria, foi acordada uma parceria entre as duas instituições a fim de produzir um relatório que subsidiasse o poder público de informações sobre a história e a identidade étnica do povo Aranã.
Em março de 2001, com o objetivo de conquistar maior legitimidade e autonomia política, os Aranã criaram o CIAPS (Conselho Indígena Aranã Pedro Sangê).
Em julho de 2001, com a intenção de manter os contatos com o órgão indigenista oficial e de otimizar o processo de "oficialização" do reconhecimento de sua identidade indígena, os Aranã enviaram documento à Administração Executiva Regional da Funaiem Governador Valadares, informando sobre sua atual situação e solicitando sua inserção nos programas governamentais destinados aos povos indígenas.
No dia 01 de outubro de 2001, ainda sem resposta da Funai, os Aranã solicitaram uma reunião com a Procuradoria da República para expor sua situação e a ausência de respostas dos organismos governamentais às suas demandas, bem como solicitar à instituição apoio para encaminhamentos do caso. Em resposta, no dia 08 de outubro, Doutor Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Procurador, encaminhou ao coordenador regional da Fundação Nacional de Saúde uma recomendação (nº8/2001) "objetivando a inclusão do Povo Indígena Aranã, em fase de estudos sobre o seu reconhecimento, para fins de assistência à saúde, incluindo-o no conjunto de população alvo da política de atenção à saúde indígena no Estado de Minas Gerais".
Assim, a partir do ano de 2002, os Aranã passaram a ser atendidos pelo Programa de Saúde do Índio no estado, consolidando a primeira vitória do grupo na luta pela inserção e acesso às políticas públicas indigenistas.
Segundo o cadastramento prévio da Funasa, realizado com base em levantamento preliminar do CIAPS em 2000, cerca de 30 famílias aranã na região de Coronel Murta e Araçuaí são assistidas pelo Programa de Saúde dos Povos Indígenas. A base econômica das famílias que residem nas áreas rurais advém de serviços prestados nas fazendas dos municípios de Coronel Murta e Araçuaí, da agricultura de subsistência - principalmente de milho, mandioca, feijão, melancia, abóbora e de hortas - e de aposentadorias. As famílias que residem nas áreas urbanas têm nas aposentadorias a sua principal fonte de renda, enquanto que os mais jovens exercem atividades diversas: professores da rede municipal de ensino, vigilantes de prédios, auxiliares de escritório e serviços em geral.
Em processo de emergência étnica, os Aranã são questionados sobre seu modo de ser, sobre a semelhança deste com o cotidiano de vida dos trabalhadores rurais da região e seu esteriótipo. Quanto a isso, eles comentam (Reunião com os Aranã, Fazenda Taquaral, 31/03/2001):
Paulinho Aranã (Jibóia): Na questão indígena (...) o que conta muito é a aparência. Se o cara não tiver a aparência de índio, os caras falam: 'você não é índio! Você está é aproveitando!' Eles falam mesmo! (...) Lá no encontro que teve lá [em Cuiabá, curso para formação de lideranças indígenas, organizado pelo GTME] (...), na hora de começar o encontro, a menina, quando pediu pra cada um fazer uma mensagem na própria língua, foi um aperto... Aí, um fala na língua dele, outro fala, aí vai rolando... Aí chegou perto de mim, assim... aí o rapaz disse que não sabia falar a língua dele e passou... Aí, só eu e mais uns dois que não falaram nada... uma mensagem na língua.Manuel: Fui criado com fazendeiro, trabalhei com fazendeiro; como que eu posso saber?...Paulinho: Pois é... Nós marcamos bobeira danada. Nós podíamos ter falado: 'bom dia para vocês todos aí.' Mas no momento que fala da língua tradicional, aí a gente não pensa.Outro Aranã: Aí, se perguntar, você fala: 'eu aprendi foi assim´.Manuel Aranã: Com tanto massacre que a gente teve... sofrimento que foi..Mulher Aranã: Eu não aprendi outra língua; eu aprendi foi essa..
Para os Aranã, a diferença entre seu povo e a sociedade envolvente não está na forma de sobrevivência, na língua, na "aparência". Para eles, a diferença passa por outras categorias, como ocorre para outros povos indígenas inseridos em contextos regionais com séculos de colonização européia. Para o grupo, ser Aranã é possuir uma história comum, uma origem indígena comum, que une através de laços de parentesco um grupo restrito de pessoas. É através desse sentimento que os Aranã se organizam, que obtêm apoio de índios e não índios e que reivindicam hoje o direito de viver em comunidade, o direito de ter uma terra.
Os Aranã foram reconhecidos oficialmente pelo governo brasileiro em maio de 2003. Dois fatores foram considerados preponderantes para essa conquista: o envio do relatório "Aranã: a luta de um povo no Vale do Jequitinhonha", de autoria do CEDEFES/ANAI/PRMG, e que subsidia o órgão indigenista oficial de informações acerca da história do grupo étnico; e o fato político do Brasil ter se tornado signatário da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que trata da auto-declaração como critério único para o reconhecimento étnico oficial.
Atualmente, os Aranã aguardam o órgão indigenista oficial (Funai) iniciar o trabalho de identificação da Terra Indígena. De acordo com técnico do DAF (Departamento de Assuntos Fundiários da Funai), uma equipe técnica do órgão deve ir à região do Vale do Jequitinhonha em 2004 para iniciar o trabalho de levantamento fundiário e diálogo com o povo indígena Aranã.
Notas sobre as fontes
A história dos Aranã atuais encontra-se mais ricamente descrita no relatório de 2003, elaborado sob a coordenação de Vanessa Caldeira , fruto do convênio entre CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) e PRMG (Procuradoria da República em Minas Gerais), em parceria com ANAI (Associação Nacional de Ação Indigenista). O documento apresenta VI seções, resultado de um trabalho de campo e pesquisa bibliográfica de 12 meses. A equipe interdisciplinar, formada por antropólogos (Vanessa Caldeira, José Augusto Sampaio e Izabel Mattos), historiadores (César Moreno e Alenice Baeta) e arqueóloga (Alenice Baeta), proporcionou ao relatório riqueza de fontes e análises.
O verbete Aranã desta Enciclopédia é um resumo da seção III deste relatório, que trata do trabalho etnográfico realizado no período de 2001/2002.
Para um resumo (01 lauda) sobre os Aranã, ver Caldeira (2001).
Sobre os registros históricos do povo Aranã ver Izabel Missagia Mattos (2002a). Em sua tese de dourado em Antropologia Social, Mattos realiza uma ampla pesquisa acerca do Aldeamento Nossa Senhora da Conceição de Itambacuri, local de referência na memória oral aranã para constituição de sua história.
Para uma análise mais profunda sobre a discussão teórica do patronímico Índio e do "patronímico apelido" Caboclo, ver Mattos (2002 b). Neste trabalho, a autora, que participou do relatório de 2003, apresenta um estudo "sobre processo identitário de um grupo familiar a partir da utilização da onomástica na interpretação do seu patronímico étnico, em suas dimensões histórica, social e simbólica". (2002 b: 02)
Outras leituras
Para melhor compreensão da presença histórica aranã na região do município de Capelinha, Minas Gerais, ver Senhora da Graça da Capelinha, de José Carlos Machado (2000). Para uma discussão teórica acerca do processo de "emergência" étnica, ver A viagem de volta: reelaboração cultural e Horizonte político dos povos indígenas no nordeste, de João Pacheco de Oliveira (1993).
Fontes de informação
- CALDEIRA, Vanessa. O povo Aranã ressurge na história do Vale do Jequitinhonha. Revista Expresso Notícias, Capelinha : s.ed., p. 19, 2001.
- -------- et al. Aranã: a luta de um povo no Vale do Jequitinhonha - Relatório. Belo Horizonte : Cedefes/Anaí/PR-MG, 2003.
- MACHADO, José Carlos. Senhora da Graça da Capelinha. Capelinha, 2000.
- MATTOS, Izabel Missagia. “Civilização" e "revolta" : povos Botocudo e indigenismo missionário na Província de Minas. Campinas : Unicamp, 2002. 577 p. (Tese de Doutorado).
- --------. O nome "índio" : patronímico étnico como suporte simbólico de memória e emergência indígena no Médio Jequitinhonha - Minas Gerais. Cadernos de Campo, São Paulo : USP, n. 10, p. 29-44, 2002.
- OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. A viagem da Volta : reelaboração cultural e Horizonte político dos povos indígenas no nordeste. In: MUSEU NACIONAL. Peti. Atlas das Terras Indígenas do Nordeste : Alagoas, Bahia (exceto sul), Ceará, praíba, Pernambuco, Sergipe. Rio de Janeiro : PETI/Museu Nacional, 1993. p.V-VIII.
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