Criado por um pedagogo, o Espiritismo surgiu na França no século XIX. Hoje, o Brasil possui a maior comunidade espírita do mundo. Saiba tudo sobre a religião que considera a morte apenas uma etapa da evolução pessoal e que acredita na vida em outros planetas
Jesus Cristo não é o enviado de Deus à Terra. É apenas um espírito mais evoluído que serve de guia para toda a humanidade.
A morte de um ente querido, por mais dolorosa que seja, não deve ser encarada de forma absolutamente negativa. Muitas vezes, é apenas o encerramento de uma missão no mundo dos vivos.
Vivemos cercados de espíritos, alguns bons, outros ruins.
As afirmações acima – que batem de frente com os princípios fundadores de muitos credos, entre eles a fé católica e todas as demais religiões dela derivadas – costumam ser proferidas de maneira desassombrada pelos espíritas em centenas de centros espalhados pelo Brasil. Pudera. Fazem parte das idéias básicas de uma religião professada por 2,3 milhões de brasileiros, segundo o último censo do IBGE.
A enorme receptividade do Espiritismo no Brasil é mais um dos inúmeros paradoxos da fé em terras tupiniquins. Embora a pátria-mãe do Espiritismo seja a França – país de Allan Kardec, o homem que, no século XIX, compilou e decodificou os princípios que até hoje orientam os 15 milhões de adeptos no mundo todo –, foi no Brasil que essa religião, gestada numa era em que a ciência se desenvolvia vertiginosamente, encontrou terreno fértil para se alastrar do Oiapoque ao Chuí. Por quê? A resposta está tanto no Espiritismo quanto no povo brasileiro.
O que é
Religião ou doutrina? Se você perguntar a algum freqüentador assíduo de centro espírita, provavelmente receberá a seguinte resposta: o Espiritismo é uma doutrina revelada pelos espíritos superiores a Allan Kardec, que a codificou em cinco obras: O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns (1859), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1863), O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868).
Mas isso explica muito pouco. Doutrinas há de todas as cores e matizes ideológicos. O Marxismo também é uma doutrina baseada em um livro fundamental (no caso, O Capital, de Karl Marx), mas nem por isso deve ser encarado como uma religião. A Psicanálise, também. Assim ocorre com outras filosofias. A diferença básica está na forma de encarar a realidade. “Se você explica a realidade social pela realidade transcendente, sua visão é religiosa”, afirma Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, professora do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estudiosa do Espiritismo no Brasil. Isso quer dizer que, sim, o Espiritismo é uma religião – pois apresenta toda uma série de explicações espirituais e divinas para eventos tão comezinhos quanto o mau humor do seu vizinho e tão devastadores quanto a morte de alguém em sua família.
Típico rebento do século XIX – o mesmo das teorias evolucionistas de Charles Darwin, da Tabela Periódica, da redescoberta das filosofias orientais e do Positivismo de Auguste Comte –, o Espiritismo consegue a proeza de mesclar Catolicismo primitivo (caridade), Budismo (reencarnações), Darwin (evolucionismo) e um caldeirão de credos esotéricos que estavam em plena voga nos anos 1800 – e que geraram filosofias tão diversas como o Espiritualismo de Emannuel Swedenborg e a Teosofia de Madame Blavatsky. “É uma religião de síntese”, afirma Maria Laura.
E só poderia ser assim mesmo. Seu iniciador, Allan Kardec (1804-1869), era um pedagogo que fundou na própria casa um curso gratuito de Química, Física, Anatomia e outras ciências que galvanizaram as mentes curiosas do século XIX e ajudaram a preparar o terreno para as revoluções científicas da nossa era. Kardec inclusive chegou a estudar Medicina, mas logo abandonou os planos de atuar nessa profissão. É por essa razão que, desde o início do movimento espírita, ele sempre fez questão de apresentar, com um vocabulário inspirado nas ciências, eventos como comunicação com espíritos e o movimento de objetos sem ação humana aparente. Num texto bastante famoso, o iniciador do Espiritismo explica seu método: “Apliquei a esta nova ciência, como tinha feito até então, o método de experimentação; nunca elaborei teorias preconcebidas: eu observava atentamente, comparava, deduzia as conseqüências…”.
A identificação explícita com o método de dedução científica foi uma tentativa de livrar o Espiritismo da pecha de irracionalidade num tempo em que a Razão era um verdadeiro dogma. E também foi – numa estratégia inversa – uma afirmação do Espiritismo como reunião de doutrinas religiosas, científicas e filosóficas para fazer frente às verdades incontestáveis da Igreja Católica. E essa, logo iria mostrar seu desagrado com a nova religião. Porque a afirmação do Espiritismo foi uma luta difícil e demorada, como se verá a seguir.
Como surgiu
Um dia, andando pelas ruas de Paris, Hippolyte Léon Denizard Rivail encontrou-se com um amigo de nome Carlotti, que lhe descreveu uma série de eventos extraordinários, supostamente provocados pela ação direta de espíritos.
Curioso e ainda descrente, Rivail começou a freqüentar algumas reuniões – e teria visto seu ceticismo virar picadinho ao observar mesas e outros objetos ganharem movimento sem a ajuda de qualquer pessoa ou mecanismo especial. Disposto a entender esses fenômenos, Rivail mergulhou no estudo de várias correntes do misticismo e começou (num gesto que viria confirmar suas inclinações científicas) a experimentar e repetir vários daqueles que seriam fenômenos de comunicação com o mundo dos mortos.
Numa das sessões que presenciava, Rivail ouviu de um médium que ele já fora um celta chamado Allan Kardec. E que, como Kardec, ele deveria reunir os muitos ensinamentos e conclusões dos últimos séculos numa doutrina que propagasse os ideais de Cristo e trouxesse alívio para os corações dos homens. Imbuído desse espírito (sem trocadilhos), Kardec começou a trabalhar na síntese que gerou o Espiritismo.
Em 1857, Kardec trouxe à luz O Livro dos Espíritos. É a partir dessa obra que se pode falar em Espiritismo (a palavra, aliás, é um neologismo cunhado pelo próprio Kardec para diferenciar a nova religião dos inúmeros espiritualismos que estavam na moda). E – outro elemento de diferenciação com as demais religiões – tinha a retórica livremente inspirada no vocabulário e no método expositivo dos livros de ciências naturais do século XIX. Uma linguagem sintética, facilmente compreensível e nada hermética.
Contudo, a nova religião iria despertar a fúria da Igreja Católica. Os motivos dão força a um debate que, mesmo hoje, mais de cem anos depois, ainda inflamam adeptos e estudiosos acadêmicos. Primeiro motivo: no Espiritismo, Cristo não é o filho de Deus – mas um espírito mais evoluído. Segundo motivo: a Redenção no Catolicismo é um evento único, total, universal. No Espiritismo ela se dá em conta-gotas, a cada passo da evolução de cada um dos espíritos.
Só essas duas diferenças já serviriam para provocar uma cisão. Sem falar na possibilidade de reencarnação, que não existe no Catolicismo. Mas – pelo menos entre os espíritas – a identificação com a fé cristã é total. “A fé espírita é baseada nos ensinamentos de Jesus: logo, é uma religião cristã”, afirma Durval Ciamponi, presidente da Federação Espírita do Estado de São Paulo.
“O Espiritismo não é uma religião cristã”, diz Antônio Flávio Pierucci, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos maiores estudiosos da religiosidade brasileira. “Os espíritas utilizam o Cristianismo para se legitimarem.” Pierucci vai mais longe. Afirma que esse vínculo com a Igreja Católica pregado pelos espíritas serviu, durante décadas, para lutar contra a discriminação: “O Espiritismo faz força para não parecer uma religião exótica”.
Esse alinhamento com os evangelhos pode ser explicado pelas perseguições sofridas pelos adeptos do Espiritismo. Já em 1861, o bispo de Barcelona, na Espanha, promoveu um auto-de-fé com livros espíritas. Uma enorme fogueira queimou os livros de Kardec. Junto com a Igreja, nessa mesma época cientistas e políticos europeus (influenciados pela Igreja ou não encontrando na doutrina o rigor que ela declarava ter) iniciaram uma poderosa campanha de difamação do Espiritismo.
No final das contas, grande parte dos estudiosos acadêmicos do Espiritismo considera a religião uma espécie de neocristianismo. “Jesus
Cristo é um elemento comum entre as duas religiões. As diferenças não apagam as semelhanças”, afirma Maria Laura.
E assim, identificado com o Cristianismo, o novo credo se alastrou pelo mundo. Chegando ao Brasil em 1860, o Espiritismo logo foi adotado por intelectuais, militares e funcionários públicos. Porém, o rastro de perseguição também chegou até aqui. O Código Penal de 1890 classificava o Espiritismo como crime. Apesar disso, a religião se fortalecia e expunha à população um dos seus lados mais meritórios: a caridade. E o ato de fazer bem às comunidades próximas dos centros espíritas se tornou uma marca tão forte no Espiritismo brasileiro que ajudou a transformar a religião e a lhe emprestar uma face tipicamente verde-amarela. É isso, em parte, que ajuda a explicar o salto quantitativo do Espiritismo no Brasil.
Há até uma cidade fundada exclusivamente por espíritas. Palmelo, a 200 quilômetros de Goiânia, GO, surgiu a partir da criação de um centro espírita, em 1929. Recebendo cerca de 50 000 visitantes todos os anos, que ali procuram consolo para inúmeras aflições físicas e espirituais, Palmelo (que foi emancipada em 1953) não permite a venda de bebidas alcoólicas e, em suas ruas, placas apresentam “pílulas” de ensinamentos espíritas extraídos dos livros de Allan Kardec.
A cidade goiana, porém, é um fato isolado. No resto do Brasil, os agrupamentos espíritas distinguem-se pela sobriedade e pelos baixos níveis de proselitismo. E mesmo com sua enorme difusão em terras brasileiras, a religião continua sendo, até hoje, uma fé professada pela classe média urbana (que, por receio de discriminação, não costuma ostentar traço algum da sua opção religiosa). “O Espiritismo difundiu-se entre profissionais liberais e pessoas da classe média dos centros urbanos porque exige leitura e instrução”, afirma Marcelo Camurça, professor de Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais.
Quem já freqüentou um centro espírita sabe disso. A atmosfera lembra ligeiramente um congresso universitário. Um auditório atento, muitas vezes municiado de algum dos livros de Kardec, escuta as leituras e os comentários feitos por um ou mais “palestrantes” reunidos em uma mesa. Tudo de um modo sóbrio e nada espetaculoso. “A sobriedade é uma das maiores fontes de identificação do Espiritismo entre a classe média”, afirma Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.
A disciplina é outra exigência não assumidamente declarada. Vai daí o grande número de militares que, desde os primórdios, mergulhou nos ensinamentos de Kardec. Um dos mais famosos espíritas fardados do Brasil é o general Alberto Cardoso, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional e líder de um centro espírita na capital federal.
Por causa de suas origens declaradamente científicas e pelo discurso que prega a racionalidade, o Espiritismo vem atraindo médicos – céticos diplomados e profissionais – nas últimas décadas. Fundada em 1968, a Associação dos Médicos Espíritas do Brasil (Amebrasil) reúne cerca de 1 200 médicos que estudam e tentam transpor para a prática diária da Medicina alguns dos princípios do Espiritismo.
É uma questão polêmica. O Espiritismo prega o tratamento homeopático e são célebres na trajetória brasileira da religião os casos de médiuns (como o mineiro José Arigó, que incorporava um suposto doutor Fritz e, inspirado por ele, fazia escatológicas cirurgias em milhares de pessoas entre os anos 50 e 70) que reúnem multidões de desvalidos em operações de fundo de quintal. Está-se falando de dois elementos que configuram prática ilegal da Medicina: receitar remédios e operar doentes sem licença para isso.
No entanto, esses aspectos não são levados em conta pelos médicos espíritas. “Sempre usei a alopatia e o próprio Chico Xavier sempre se operou pela Medicina tradicional”, afirma Marlene Rossi Severino Nobre, médica aposentada pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo e presidente da Amebrasil. Marlene – que trabalhou com Chico em Uberaba no início da década de 60 e com ele chegou a psicografar algumas obras – não divisa conflito algum entre Medicina e Espiritismo. “O médico espírita leva aos seus pacientes os ideais de caridade da doutrina Espírita”, diz. “A Medicina é muito reducionista”, afirma. Para ela, a única explicação para a vida biológica, para o surgimento das células e para a evolução do Homem é a ação de forças superiores, ainda pouco compreendidas pela humanidade.
Nos próximos anos, os médicos da Amebrasil pretendem intensificar uma série de experimentos para comprovar eventos como campo magnético e experiências de quase-morte, até hoje inexplicados pela ciência tradicional. Sem contar com aval universitário algum, nem com qualquer tipo de estímulo de órgãos tradicionais de fomento à pesquisa como Capes e CNPq, a Amebrasil equilibra-se numa corda-bamba entre ciência e fé. É uma polêmica que promete esquentar os meios médicos e espíritas brasileiros num futuro próximo.
Mas um comportamento sóbrio, a prática da caridade e a adesão crescente de setores da Medicina não explicam totalmente o ibope do Espiritismo no Brasil. A fé espírita germinou aqui mais do que em qualquer outro lugar porque encontrou um terreno fértil para grande parte de seus princípios. Uma mistura muito brasileira de crenças católicas populares herdadas de Portugal, adoração aos mortos e religiosidades indígena e negra ajudou a alastrar o alcance da fé.
E foi no Brasil que surgiu o maior médium desde Allan Kardec. Francisco Cândido Xavier (1910-2002), franzino e modesto, com uma saúde combalida desde sempre, encarnou como ninguém os ideais de comedimento, benevolência e austeridade do Espiritismo. Sua adesão à fé obedeceu aos insondáveis princípios de uma predestinação.
Órfão ainda na infância, Chico teria começado a se comunicar e a se aconselhar com o espírito da mãe. Na escola, durante as comemorações do Centenário da Independência, em 1922, a turma de Chico deveria escrever uma redação sobre o acontecimento nacional. Durante a aula, o menino teria se perturbado com a presença de um homem ao seu lado, ditando-lhe o texto – que obteve menção honrosa.
Com 18 anos e buscando uma explicação para os fenômenos que o teriam acompanhado desde a infância, Chico já é um freqüentador de centros espíritas. E logo fica bem claro para todos que aquele rapaz de saúde frágil é um médium destinado a limpar as últimas nódoas de marginalidade que ainda recobrem o Espiritismo no Brasil. É a partir desse momento que ele teria entrado em contato com as primeiras manifestações do espírito Emmanuel – o que lhe renderia o posto de “co-autor” de nada menos que cerca de 400 títulos por ele psicografados sob inspiração do espírito e que venderam 25 milhões de livros em todo o mundo.
Com Emmanuel (que teria sido o senador romano Publius, depois um escravo cristão dilacerado por leões e, finalmente, o padre Manuel da Nóbrega, já em terras brasileiras), Chico realizou vários avanços na doutrina formada por Kardec, alastrando a sabedoria espírita para outros campos, como ciências sociais e economia. Imbuído do espírito de caridade, Chico destinou toda a renda a entidades sociais e aposentou-se com um modesto salário de funcionário público.
Quando morreu, em 30 de junho deste ano, deixou uma multidão de seguidores e leitores em todos os cantos do planeta e uma lição de humildade e amor ao próximo que transcende os limites do Espiritismo.
O que prega
Para entender o Espiritismo, é preciso saber que a base de toda a religião está exposta nas cinco obras seminais de Allan Kardec. Desde esse nascimento na França oitocentista, o Espiritismo reivindica não apenas um status de religião, mas também de ciência e de filosofia. Ou seja: é uma fé e uma doutrina cujas manifestações – contato com espíritos, regressões a vidas passadas e textos psicografados – poderiam ser comprovadas através do método dedutivo herdado da ciência.
Segundo o Espiritismo, todo homem é um médium, um canal de comunicação entre os vivos e os espíritos. Por isso, não existe um papa espírita nem qualquer tipo de hierarquia dentro da religião (a ausência de paramentos e cerimoniais também é uma característica “racionalista” dentro da fé espírita). Nos centros espíritas, por exemplo, a função de liderança geralmente está reservada ao médium mais experiente ou ao próprio fundador do centro.
A simplicidade pregada pelo Espiritismo também estaria explicitada pela inexistência de grandes rituais de passagem como casamentos, batismos e enterros. Isso porque os espíritas acreditam ser desnecessário o vínculo com Deus – “a inteligência suprema”, como prega Allan Kardec. Céu, inferno e diabo virtualmente não existem no horizonte espírita. Isso porque o Bem e o Mal podem estar dentro de cada um, sem que haja a necessidade de uma localização para cada um.
Os médiuns comunicam-se com os espíritos das mais diversas maneiras. Houve um tempo em que a comunicação se dava por meio de batidinhas na parede, mas hoje, na maioria dos centros espíritas, as principais formas de comunicação costumam ser a psicografia e a incorporação. Em sessões chamadas de “desobsessão” (quando um espírito cheio de más intenções incomoda uma pessoa), os médiuns incorporam essas entidades chamadas “obsessoras” e procuram convencê-las da falta de sentido em assombrar a vida dos “encarnados”.
O Espiritismo acredita que os espíritos são criados numa espécie de “ponto zero”, onde todos são imperfeitos e devem chegar – ao longo de várias e sucessivas encarnações – à perfeição. A cada encarnação o espírito aprende um pouco mais sobre bondade, tolerância e caridade. Claro que nem todos são “santos”: o livre-arbítrio (a capacidade de cada um escolher o seu destino) é um elemento importante da religião. Por isso, haveria espíritos deliberadamente “maléficos” fadados a intermináveis (e sofridas) encarnações na Terra. Os espíritos só se tornarão mais iluminados e superiores na medida em que forem eliminando seus maus hábitos, os aspectos ruins do seu caráter e passarem a praticar o bem.
Um fato curioso é a crença dos espíritas na vida em outros planetas. “Os espíritos são intergalácticos”, afirma Durval Ciamponi, da Federação Espírita de São Paulo. Isso não significa, necessariamente, a existência de ETs pilotando discos voadores pelo espaço sideral: mas formas de vida – inclusive minerais – que são habitadas por espíritos em diferentes estágios de evolução em lugares tão inóspitos quanto Saturno ou Plutão. Essa crença numa força divina interplanetária fez do Espiritismo, desde a década de 1960, um dos elementos que ajudaram a compor as religiões new age. “O Espiritismo antecipa toda essa onda de religiões e doutrinas da Nova Era”, afirma Marcelo Camurça, da UFJF.
Kardec fatiou o homem em três porções básicas: espírito (“essência imortal”), corpo (“invólucro material”) e perispírito (“corpo” que reveste o espírito). Quando uma pessoa morre, sua alma e seu perispírito libertam-se do corpo e passam a seguir um trajeto rumo à reencarnação. Um espírito irá encarnar tantas vezes quantas forem necessárias para atingir a perfeição. O mundo material, portanto, seria uma espécie de universidade onde os espíritos aprendem com as provações.
É nesse mundo que nos coube viver que cada ação seria avaliada como mais um aspecto da evolução pessoal. O velho adágio “aqui se faz, aqui se paga” recebe, no Espiritismo, uma validade bastante concreta. E são essas “dívidas”que explicariam, por exemplo, o nascimento de uma criança sem cérebro ou a paralisia de um adulto: tragédias pessoais que, do ponto de vista da doutrina, seriam necessárias para que o espírito refletisse e compreendesse que todos os reveses acontecem para seu benefício durante a evolução.
Temas incandescentes como aborto, eutanásia e suicídio são condenados – como na maior parte das religiões –, mas sua possibilidade existe porque cada um conta com o livre-arbítrio.
O percurso evolutivo de cada um explica as diferenças sociais, de saúde ou de capacidade intelectual. As benesses ou tragédias de cada um fazem parte do carma – que pode ser revertido graças a ações meritórias. Pois fazer o bem para os outros, no Espiritismo, é fazer o bem para si mesmo. Por isso a caridade é um dos elementos mais importantes da religião: ela serve para amenizar o sofrimento alheio e “conta pontos” na evolução de quem a pratica.
“Fora da caridade não há salvação”, prega a mais famosa frase de Allan Kardec. Pode-se discordar ou mesmo refutar desdenhosamente os princípios do Espiritismo. Porém, é virtualmente impossível fazer troça ou ignorar o legado de respeito ao próximo difundido por essa religião. Um princípio que, tranqüilamente, pode ser seguido por qualquer um que habite o nosso planeta. Acredite em Deus ou não.
Pequeno vocabulário espírita
Nas cinco obras que deixou para a posteridade, Allan Kardec estabeleceu os princípios básicos da doutrina espírita. Uma curiosa mistura de conceitos religiosos com alguma terminologia científica do século XIX. Conheça alguns dos principais termos do Espiritismo:
Universo
Criação de Deus. Todos os seres racionais e irracionais, animados e inanimados fazem parte dele. Comporta vários mundos habitados com seres em diferentes graus de evolução.
Deus
É considerado uma forma de inteligência suprema. Eterno, imutável, imaterial, justo, bom e onipotente.
Cristo
Ao contrário do que pregam a maior parte das religiões cristãs, Jesus Cristo não é o filho de Deus, mas um espírito mais evoluído. E um modelo para toda a humanidade.
Espíritos
Seres inteligentes da criação. São criados ignorantes e evoluem ao longo de várias vidas até alcançarem a perfeição. Dividem-se em “espíritos puros” (perfeição máxima), “bons espíritos” (em que predomina o desejo do bem) e “espíritos imperfeitos” (caracterizados pelo desejo do Mal).
Homem
Espírito encarnado em um corpo material.
Reencarnação
O espírito atravessa várias existências como encarnado. Cada uma delas é um estágio evolutivo rumo à perfeição.
Desencarnar
A morte (desencarnação) é encarada como apenas mais um estágio da vida espiritual – considerada a verdadeira vida. Não é compreendida como uma cisão definitiva entre as pessoas que se amam, mas apenas uma separação temporária no mundo físico.
Livre-arbítrio
O homem tem várias escolhas na vida, mas responde por todas as suas ações.
Prece
A prece torna melhor o homem e é um ato de adoração a Deus.
Abençoado por Deus
Paradoxos do país tropical: a maior nação católica do mundo (cerca de 125 milhões de praticantes, segundo o censo do IBGE) ofereceu, desde os primórdios da colonização, um terreno fértil para a mistura de credos e favoreceu o surgimento de modalidades de fé genuinamente brasileiras. Religiões tão diversas quanto Candomblé, Catimbó, Pajelança, Tambor de Mina, Umbanda e a face nacional do Espiritismo formaram-se a partir de elementos comuns.
Uma das maiores explicações para o sincretismo brasileiro estaria no Catolicismo legado pelos portugueses. A fé católica que veio de além-mar é muito mais “íntima” e “pessoal” do que a de outros países cristãos da Europa. Em Portugal e, em seguida, no Brasil, a relação dos homens com Deus geralmente é filtrada pelo santo da predileção de cada um. Antes de recorrer a Deus, portugueses e brasileiros vão bater na porta do santo mais próximo. A profusão de anjos da guarda, de rezas particulares e de toda uma sorte de benzeduras favoreceu a mescla de elementos cristãos com outros originários dos rituais indígenas e africanos.
Outro elemento do Catolicismo popular que iria ser combinado com práticas religiosas nativas é a adoração aos mortos. Procissões populares e mesmo o hábito de “conversar” ao pé do túmulo de um ente querido favoreceram a penetração de credos em que o contato com o mundo dos mortos é um dos elementos básicos – como o Espiritismo.
Assim como, no campo racial, a mestiçagem serviu para anestesiar certos conflitos, a Igreja portuguesa soube incorporar – ou, no mínimo estrategicamente, não quis condenar – algumas manifestações religiosas inspiradas no Catolicismo que surgiram ao longo da história brasileira. Festas populares repletas de elementos de outros credos, divindades africanas que poderiam ser “permutadas” por equivalentes na fé cristã (Oxalá Jovem = Menino Jesus) e o saudável livre-trânsito, tipicamente nacional, entre mundos religiosos paralelos (milhões de brasileiros comparecem às quartas no terreiro e aos domingos na missa), forjaram a democracia religiosa nacional.
“O Catolicismo no Brasil sempre favoreceu a mistura”, diz a médica e pesquisadora Eneida D. Gaspar, autora do Guia de Religiões Populares do Brasil. Eneida afirma que foi graças a essa postura mais flexível da Igreja que religiões como Umbanda – uma mistura de elementos cristãos, espíritas e africanos – ganharam forma no início do século XX.
Mas nem tudo são flores na trajetória das religiões brasileiras. A maior parte delas foi condenada no início justamente porque apresentava forte influência africana. Terreiros de Candomblé eram sistematicamente fechados pela polícia ainda nos anos 50.
A forma encontrada para o fim da discriminação diz muito sobre a alma brasileira: quando brancos de classe média, com conhecimento do Espiritismo, ingressaram nos terreiros, a nuvem de preconceito rapidamente se dissipou.
A Umbanda é um caso exemplar dessas transformações da religiosidade brasileira. Mesclando os principais ensinamentos do Espiritismo com o ritualismo e a força teatral do Candomblé, a Umbanda fez com que o preconceito contra práticas africanas – no idioma da discriminação, todas as religiões negras são “macumba” – fosse diminuindo com o passar dos anos graças à freqüência de um público de maior poder aquisitivo.
Paradoxalmente, no momento em que a Igreja parou de discriminar outras crenças, incorporando elementos africanos e indígenas, as igrejas neopentecostais – ou evangélicas – desestimulam seus fiéis à prática do sincretismo. Associam-no à prática de satanismo.
Desencarnar
A morte (desencarnação) é encarada como apenas mais um estágio da vida espiritual – considerada a verdadeira vida. Não é compreendida como uma cisão definitiva entre as pessoas que se amam, mas apenas uma separação temporária no mundo físico.
Livre-arbítrio
O homem tem várias escolhas na vida, mas responde por todas as suas ações.
Prece
A prece torna melhor o homem e é um ato de adoração a Deus.
Abençoado por Deus
Paradoxos do país tropical: a maior nação católica do mundo (cerca de 125 milhões de praticantes, segundo o censo do IBGE) ofereceu, desde os primórdios da colonização, um terreno fértil para a mistura de credos e favoreceu o surgimento de modalidades de fé genuinamente brasileiras. Religiões tão diversas quanto Candomblé, Catimbó, Pajelança, Tambor de Mina, Umbanda e a face nacional do Espiritismo formaram-se a partir de elementos comuns.
Uma das maiores explicações para o sincretismo brasileiro estaria no Catolicismo legado pelos portugueses. A fé católica que veio de além-mar é muito mais “íntima” e “pessoal” do que a de outros países cristãos da Europa. Em Portugal e, em seguida, no Brasil, a relação dos homens com Deus geralmente é filtrada pelo santo da predileção de cada um. Antes de recorrer a Deus, portugueses e brasileiros vão bater na porta do santo mais próximo. A profusão de anjos da guarda, de rezas particulares e de toda uma sorte de benzeduras favoreceu a mescla de elementos cristãos com outros originários dos rituais indígenas e africanos.
Outro elemento do Catolicismo popular que iria ser combinado com práticas religiosas nativas é a adoração aos mortos. Procissões populares e mesmo o hábito de “conversar” ao pé do túmulo de um ente querido favoreceram a penetração de credos em que o contato com o mundo dos mortos é um dos elementos básicos – como o Espiritismo.
Assim como, no campo racial, a mestiçagem serviu para anestesiar certos conflitos, a Igreja portuguesa soube incorporar – ou, no mínimo estrategicamente, não quis condenar – algumas manifestações religiosas inspiradas no Catolicismo que surgiram ao longo da história brasileira. Festas populares repletas de elementos de outros credos, divindades africanas que poderiam ser “permutadas” por equivalentes na fé cristã (Oxalá Jovem = Menino Jesus) e o saudável livre-trânsito, tipicamente nacional, entre mundos religiosos paralelos (milhões de brasileiros comparecem às quartas no terreiro e aos domingos na missa), forjaram a democracia religiosa nacional.
“O Catolicismo no Brasil sempre favoreceu a mistura”, diz a médica e pesquisadora Eneida D. Gaspar, autora do Guia de Religiões Populares do Brasil. Eneida afirma que foi graças a essa postura mais flexível da Igreja que religiões como Umbanda – uma mistura de elementos cristãos, espíritas e africanos – ganharam forma no início do século XX.
Mas nem tudo são flores na trajetória das religiões brasileiras. A maior parte delas foi condenada no início justamente porque apresentava forte influência africana. Terreiros de Candomblé eram sistematicamente fechados pela polícia ainda nos anos 50.
A forma encontrada para o fim da discriminação diz muito sobre a alma brasileira: quando brancos de classe média, com conhecimento do Espiritismo, ingressaram nos terreiros, a nuvem de preconceito rapidamente se dissipou.
A Umbanda é um caso exemplar dessas transformações da religiosidade brasileira. Mesclando os principais ensinamentos do Espiritismo com o ritualismo e a força teatral do Candomblé, a Umbanda fez com que o preconceito contra práticas africanas – no idioma da discriminação, todas as religiões negras são “macumba” – fosse diminuindo com o passar dos anos graças à freqüência de um público de maior poder aquisitivo.
Paradoxalmente, no momento em que a Igreja parou de discriminar outras crenças, incorporando elementos africanos e indígenas, as igrejas neopentecostais – ou evangélicas – desestimulam seus fiéis à prática do sincretismo. Associam-no à prática de satanismo.
fonte: https://super.abril.com.br/historia/espiritismo-que-religiao-e-essa/
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