1. Em todos os tempos o homem acreditou, por intuição, que a vida futura devia ser bem-aventurada ou desventurada em razão do bem e do mal que se realiza aqui embaixo; porém a ideia que ele faz dessa vida futura está em relação com o desenvolvimento de seu senso moral, e as noções mais ou menos exatas que possui do bem e do mal; penas e recompensas são reflexo de seus instintos predominantes. É assim que os povos guerreiros colocam sua suprema felicidade nas honrarias prestadas à bravura, os povos caçadores na abundância da caça, os povos sensuais nas delícias da volúpia. Enquanto o homem for dominado pela matéria, pode só imperfeitamente compreender a espiritualidade, é por isso que faz das penas e dos gozos futuros um quadro mais material que espiritual; imagina que se deve beber e comer no outro mundo, mas melhor do que na terra, e coisas melhores. * Chegado a certo nível, há nas crenças referentes ao futuro uma mistura de espiritualidade e de materialidade; é assim que ao lado da beatitude contemplativa, ele coloca um inferno com torturas físicas.
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* Um garoto saboiano, ao qual o padre pintava um quadro sedutor da vida futura, perguntou-lhe se lá todo mundo comia pão branco como em Paris.
2. Não podendo o homem primitivo conceber senão o que vê, calcou naturalmente seu futuro sobre o presente; para compreender outros tipos além dos que tinha à vista, precisava de um desenvolvimento intelectual que só devia se realizar com o tempo. Também o quadro que ele imagina dos castigos da vida futura é apenas o reflexo dos males da humanidade, mas em mais ampla proporção; reuniu ali todas as torturas, todos os suplícios, todas as aflições que encontra na Terra; é assim que, nos climas ardentes, ele imaginou um inferno de fogo, e nas regiões boreais um inferno glacial. Não estando ainda desenvolvido o sentido que devia mais tarde lhe fazer compreender o mundo espiritual, ele podia conceber somente penas materiais; por isso, com pequenas diferenças de forma, o inferno de todas as religiões se assemelha.
Inferno cristão imitado do inferno pagão
3. - O inferno dos pagãos, descrito e dramatizado pelos poetas, foi o modelo mais grandioso do gênero; perpetuou-se no dos cristãos o qual teve, também, seus panegiristas poéticos. Comparando-os, encontram-se neles, exceto os nomes e algumas variantes nos detalhes, inúmeras analogias; num e noutro o fogo material é a base dos tormentos, porque é o símbolo dos mais cruéis sofrimentos. Mas, coisa estranha, os cristãos, em muitos pontos, exageraram o inferno dos pagãos! Se estes últimos tinham no deles o tonel das Danaides, a roda de Íxion, o rochedo de Sísifo, eram suplícios individuais; o inferno cristão tem para todos caldeiras borbulhantes cujas tampas os anjos levantam para ver as contorções dos condenados às penas eternas; * Deus ouve sem compaixão os gemidos destes durante a eternidade. Jamais os pagãos descreveram os habitantes dos Campos Elíseos saciando a vista com os suplícios do Tártaro. **
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* Sermão pregado em Montpellier em 1860.
** “Os bem-aventurados, sem sair do lugar que ocupam, sairão, entretanto, de uma certa maneira, em razão de seus dons de inteligência e de suas visões distintas, a fim de considerar as torturas dos danados; e, vendo-os, não somente não sentirão nenhuma dor, mas estarão cumulados de alegria, e renderão graças a Deus pela própria felicidade, assistindo a inefável calamidade dos ímpios” (Santo Thomas de Aquino.)
4. - Como os pagãos, os cristãos têm seu rei dos infernos que é Satã, com a diferença de que Plutão se limitava a governar o sombrio império que lhe tocara na partilha, mas não era malvado; retinha em sua casa aqueles que haviam cometido o mal, porque essa era sua missão, mas não procurava induzir os homens ao mal para ter o prazer de fazê-los sofrer, ao passo que Satã recruta em toda a parte vítimas que se compraz em fazer atormentar pelas suas legiões de demônios armados de forcados para as agitar no fogo. Discutiu-se mesmo seriamente sobre a natureza desse fogo que queima incessantemente os condenados sem jamais os consumir; perguntou-se se era um fogo de betume. * O inferno cristão não fica, portanto, a dever nada ao inferno pagão.
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* Sermão pregado em Paris em 1861.
5. - As mesmas considerações que, entre os Antigos, haviam feito localizar a morada da felicidade, haviam também feito circunscrever o lugar dos suplícios. Tendo os homens colocado a primeira nas regiões superiores, era natural colocar o segundo nos lugares inferiores, ou seja, no centro da Terra ao qual certas cavidades sombrias e de aspecto terrível serviam de entrada. Foi também lá que os cristãos colocaram por muito tempo a morada dos reprovados. Notemos ainda sobre este assunto outra analogia. O inferno dos pagãos encerrava de um lado os Campos Elíseos e do outro o Tártaro; o Olimpo, morada dos deuses e dos homens divinizados, ficava nas regiões superiores. Segundo a carta do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, ou seja, aos lugares baixos, para daí tirar as almas dos justos que aguardavam sua vinda. Os infernos não eram, então, unicamente um lugar de suplício; como entre os pagãos, eles estavam também nos lugares baixos. Assim como o Olimpo, a morada dos anjos e dos santos era nos lugares elevados; colocaram-no além do céu das estrelas que se acreditava limitado.
6. - Esta mistura das ideias pagãs e das ideias cristãs nada tem que deva surpreender. Jesus não podia subitamente destruir crenças enraizadas; faltavam aos homens os conhecimentos necessários para conceber o infinito do espaço e o número infinito dos mundos; a Terra era para eles o centro do universo; não lhe conheciam nem a forma nem a estrutura interna; tudo era para eles limitado a seu ponto de vista: suas noções do futuro não se podiam estender além de seus conhecimentos. Jesus achava-se então na impossibilidade de iniciá-los no verdadeiro estado das coisas; mas, por outro lado, não querendo sancionar por sua autoridade os preconceitos vigentes, ele se absteve, deixando ao tempo o cuidado de retificar as ideias. Limitou-se a falar vagamente da vida bem-aventurada e dos castigos que aguardam os culpados, mas em nenhum lugar, em seus ensinamentos, se encontra o quadro dos suplícios corporais dos quais os cristãos fizeram um artigo de fé. Eis como as ideias do inferno pagão se perpetuaram até os nossos dias. Foi precisa a difusão das luzes nos tempos modernos, e o desenvolvimento geral da inteligência humana para lhes fazer justiça. Mas então, como nada de positivo substituía as ideias preconcebidas, ao longo período de uma crença cega sucedeu, como transição, o período de incredulidade, ao qual a nova revelação vem pôr um termo. Era preciso demolir antes de reconstruir, pois é mais fácil fazer aceitar ideias justas àqueles que não creem em nada, porque eles sentem que lhes falta algo, do que aos que têm uma fé robusta no que é absurdo.
7. – Pela localização do céu e do inferno, as religiões cristãs foram levadas a admitir para as almas apenas duas situações extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O purgatório não é mais do que uma posição intermediária momentânea à saída da qual elas passam sem transição à morada dos bem-aventurados. Não poderia ser de outra forma segundo a crença na determinação definitiva do destino da alma depois da morte. Se não há senão duas moradas, a dos eleitos e a dos reprovados, não se podem admitir vários graus em cada uma sem admitir a possibilidade de galgá-los, e, por conseguinte o progresso; ora, se há progresso, não há destino definitivo; se há destino definitivo, não há progresso. Jesus resolve a questão quando diz: “Há muitas moradas na casa de meu pai .” *
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* Vede o Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.
Os limbos
8. - A Igreja admite, é verdade, uma posição especial em certos casos particulares. As crianças mortas em tenra idade, não tendo feito nenhum mal, não podem ser condenadas ao fogo eterno; por outro lado, não tendo feito nenhum bem, não têm nenhum direito à felicidade suprema. Ficam então, diz ela, no limbo, situação mista que jamais foi definida, na qual, não sofrendo, também não gozam da perfeita felicidade. Mas visto que seu destino está irrevogavelmente determinado, elas estão privadas dessa felicidade por toda a eternidade. Essa privação, embora não tenha dependido delas que fosse de outra maneira, equivale a um suplício eterno imerecido. Acontece o mesmo com os selvagens que, não tendo recebido a graça do batismo e as luzes da religião, pecam por ignorância, abandonando-se aos instintos naturais, não podem ter nem a culpa nem os méritos dos que puderam trabalhar com conhecimento de causa para seu avanço. A simples lógica repele semelhante doutrina em nome da justiça de Deus. A justiça de Deus está toda nesta expressão de Cristo: “A cada um segundo suas obras;”, mas é preciso entender que se refere às obras boas ou más que se realizam livremente, voluntariamente, as únicas em cuja responsabilidade se incorre, o que não é o caso da criança, nem do selvagem, nem daquele do qual não dependeu ser esclarecido.
Quadro do inferno pagão
9. - Só conhecemos o inferno pagão pela narrativa dos poetas; Homero e Virgílio fizeram dele a mais completa descrição, mas é preciso levar em conta os limites que a poesia impõe à forma. A de Fénelon, em seu Telêmaco, embora extraída da mesma fonte quanto às crenças fundamentais, tem a simplicidade mais precisa da prosa. Descrevendo o aspecto lúgubre dos lugares, ressalta acima de tudo o gênero de sofrimentos infligidos aos culpados, e se estende muito sobre o destino dos maus reis, tendo em vista a instrução de seu real aluno. Por mais popular que seja sua obra, talvez muitas pessoas não se lembrem dela, ou não tenham refletido o suficiente sobre ela para estabelecer uma comparação; é por isso que cremos útil reproduzir aqui as partes que têm uma relação mais direta com o assunto que nos ocupa, ou seja, aquelas que se referem mais precisamente à penalidade individual.
10. - “Ao entrar, Telêmaco ouve os gemidos de uma sombra que não podia consolar-se. Qual é então, disse-lhe ele, vossa desgraça? Eu era, responde-lhe a sombra, Nabofarzan, rei da soberba Babilônia; todos os povos do Oriente tremiam ao simples som do meu nome; fazia-me adorar pelos babilônios num templo de mármore onde era representado por uma estátua de ouro diante da qual ardiam dia e noite os mais preciosos perfumes da Etiópia; jamais alguém ousou contradizer-me sem ser logo punido; inventavam-se todo dia novos prazeres para tornar minha vida mais deliciosa. Eu era então jovem e robusto; ah! quantos dias afortunados tinha ainda a gozar no trono! Mas uma mulher que eu amava, e que não me amava, fez-me sentir que eu não era deus: ela me envenenou; não sou mais nada. Puseram ontem com pompa minhas cinzas numa urna de ouro; choraram, arrancaram os cabelos; fingiram querer jogar-se nas chamas de minha fogueira para morrer comigo; vão ainda gemer ao pé do soberbo túmulo onde puseram minhas cinzas: mas ninguém me lamenta, minha memória é odiada mesmo na minha família, e aqui embaixo já estou sofrendo horríveis tratamentos.
“Telêmaco, tocado por esse espetáculo, disse-lhe: Éreis verdadeiramente feliz durante vosso reinado? Sentíeis aquela doce paz sem a qual o coração permanece sempre apertado e ressequido em meio às delícias? Não, respondeu o babilônio; nem mesmo sei o que quereis dizer. Os sábios elogiam essa paz como o único bem: por mim, nunca a senti; meu coração era incessantemente agitado por desejos novos, temor e esperança. Eu tentava atordoar-me pela excitação de minhas paixões; tinha o cuidado de manter essa embriaguez para torná-la contínua; o menor intervalo de sensatez teria sido demasiado amargo. Eis a paz de que gozei; qualquer outra me parece uma fábula e um sonho; eis os bens que lamento.
“Falando assim, o babilônio chorava como um homem covarde que foi amolecido pela fortuna e não está acostumado a suportar constantemente a desgraça. Tinha perto dele alguns escravos que haviam sido sacrificados em sua homenagem no funeral; Mercúrio entregara-os a Caronte com seu rei, e dera-lhes poder absoluto sobre esse rei que haviam servido na terra. Essas sombras de escravos não mais temiam a sombra de Nabofarzan; elas a mantinham acorrentada e faziam-lhe as mais cruéis afrontas. Uma dizia-lhe: Nós não éramos homens como tu? Como podias ser tão insensato a ponto de te creres um deus? E não devias lembrar-te de que eras da raça dos outros homens? Outra, para insultá-lo, dizia: Tinhas razão de não querer que te tomassem por um homem, pois eras um monstro sem humanidade. Uma outra dizia-lhe: Pois bem! Onde estão agora os teus aduladores? Não tens mais nada para dar, desgraçado! Não podes fazer mais nenhum mal; és agora escravo dos teus próprios escravos: os deuses são lentos para fazer justiça, mas enfim a fazem.
“A essas duras palavras, Nabofarzan se jogava de rosto no chão, arrancando os cabelos num ataque de raiva e desespero. Mas Caronte dizia aos escravos: Puxai-o pela corrente; levantai-o à força, ele não terá nem mesmo o consolo de esconder sua vergonha; é preciso que todas as sombras do Estige sejam testemunhas para justificar os deuses, que aguentaram tanto tempo que este ímpio reinasse na Terra.
“Ele logo percebe, bem perto dele, o negro Tártaro; dali saía uma fumaça negra e espessa, cujo cheiro pestilento causaria a morte se ele se espalhasse pela morada dos vivos. Essa fumaça cobria um rio de fogo e turbilhões de chamas, cujo estrépito, semelhante ao das torrentes mais impetuosas quando se lançam dos mais altos rochedos no fundo dos abismos, fazia que nada se pudesse ouvir distintamente naqueles tristes lugares.
“Telêmaco, secretamente animado por Minerva, entra sem temor nesse abismo. Primeiro percebeu muitos homens que viveram nas mais baixas condições, e que eram punidos por terem buscado riquezas por meio de fraudes, traições e crueldades. Notou ali muitos ímpios hipócritas que, fingindo amar a religião, tinham-na usado como um belo pretexto para satisfazerem sua ambição e enganarem os homens crédulos: esses homens, que haviam abusado da própria virtude, embora ela seja o maior dom dos deuses, eram punidos como os mais celerados de todos os homens. Os filhos que assassinaram pais e mães, as esposas que sujaram as mãos no sangue dos esposos, os traidores que entregaram a pátria depois de terem violado todos os juramentos, sofriam penas menos cruéis do que esses hipócritas. Os três juízes dos infernos tinham-no desejado assim, e eis sua razão: esses hipócritas não se contentam com a maldade como o resto dos ímpios; querem ainda passar por bons e fazem, por sua falsa virtude, que os homens não ousem mais confiar na verdadeira virtude. Os deuses, com os quais eles brincaram e tornaram desprezíveis para os homens, aprazem-se em empregar todo o seu poder para se vingarem de seus insultos.
“Perto destes apareciam outros homens que o vulgo não crê muito culpados, e que a vingança divina persegue implacavelmente; são os ingratos, os mentirosos, os aduladores que elogiaram o vício, os críticos maliciosos que tentaram aviltar a mais pura virtude; enfim, aqueles que temerariamente julgaram coisas sem conhecê-las a fundo, e com isso prejudicaram a reputação dos inocentes.
“Telêmaco, vendo os três juízes que estavam sentados e que condenavam um homem, ousou perguntar-lhes quais eram seus crimes. Imediatamente o condenado, tomando a palavra, exclamou: Nunca fiz nenhum mal; tive todo o prazer em fazer o bem; fui magnífico, liberal, justo, compassivo; o que se pode, portanto, reprovar-me? Então Minos disse-lhe: Não te reprovamos nada em relação aos homens; mas tu não devias menos aos homens do que aos deuses? Qual é então essa justiça de que te gabas? Não faltaste a nenhum dever para com os homens, que não são nada; foste virtuoso, mas dirigiste toda a tua virtude a ti mesmo, e não aos deuses, que te deram-na, pois querias gozar do fruto da tua própria virtude e fechar-te em ti mesmo: foste a tua divindade. Mas os deuses, que fizeram tudo, e que não fizeram nada a não ser por eles mesmos, não podem renunciar a seus direitos; tu os esqueceste, eles te esquecerão; entregar-te-ão a ti mesmo, visto que quiseste ser teu e não deles. Busca agora então, se puderes, a consolação em teu próprio coração. Eis-te separado para sempre dos homens aos quais quiseste agradar; eis-te só contigo mesmo, que eras teu ídolo: aprende que não há verdadeira virtude sem o respeito e o amor aos deuses, aos quais tudo é devido. Tua falsa virtude, que seduziu por muito tempo os homens fáceis de enganar, vai ser desmascarada.Os homens, julgando vícios e virtudes apenas pelo que os choca ou lhes convém, são cegos sobre o bem e sobre o mal. Aqui, uma luz divina inverte todos os seus julgamentos superficiais; ela condena com frequência o que eles admiram e justifica o que eles condenam.
“A essas palavras, esse filósofo, como que atingido por um raio, não podia suportar a si mesmo. A complacência que tivera outrora ao contemplar sua moderação, sua coragem e suas inclinações generosas, torna-se desespero. A visão de seu próprio coração, inimigo dos deuses, torna-se seu suplício; ele se vê e não pode cessar de se ver; vê a vaidade dos julgamentos dos homens, aos quais quis agradar em todas as suas ações. Ocorre uma revolução universal em todo o seu interior, como se suas entranhas fossem reviradas; ele não se reconhece mais; falta-lhe todo o apoio de seu coração; sua consciência, cujo testemunho lhe fora tão doce, se ergue contra ele e reprova-lhe amargamente o desvario e a ilusão de todas as suas virtudes, que não tiveram o culto da divindade por princípio e por fim: ele está perturbado, consternado, cheio de vergonha, de remorsos e de desespero. As fúrias não o atormentam, porque lhes basta tê-lo entregado a si mesmo, e que seu próprio coração vingue os deuses menosprezados. Não podendo se esconder de si mesmo, ele procura os lugares mais escuros para se esconder dos outros mortos. Procura as trevas e não pode encontrá-las; uma luz importuna o segue por toda a parte; em toda a parte os raios penetrantes da verdade vão vingar a verdade que ele negligenciou seguir. Tudo o que amou se torna odioso, como sendo a fonte de seus males, que jamais podem acabar. Diz a si mesmo: Ó insensato! Então não conheci nem os deuses, nem os homens, nem a mim mesmo! Não, não conheci nada, visto que jamais amei o único e verdadeiro bem; todos os meus passos foram desvarios; minha sabedoria não era senão loucura; minha virtude era apenas um orgulho ímpio e cego: eu era meu próprio ídolo.
“Enfim Telêmaco avistou os reis que eram condenados por terem abusado de seu poder. De um lado uma fúria vingadora apresentava-lhes um espelho que lhes mostrava toda a deformidade de seus vícios: ali eles viam e não podiam deixar de ver sua vaidade grosseira e ávida das mais ridículas lisonjas; sua dureza para com os homens, cuja felicidade deveriam ter assegurado; sua insensibilidade para com a virtude; seu temor de ouvir a verdade; sua inclinação para os homens covardes e aduladores; sua falta de aplicação; sua moleza; sua indolência; sua desconfiança descabida; seu fausto e excessiva magnificência baseada na ruína dos povos; sua ambição de comprar um pouco de glória vã com o sangue de seus cidadãos; enfim sua crueldade, que procura a cada dia novas delícias em meio às lágrimas e ao desespero de tantos infelizes. Eles viam-se sem cessar nesse espelho; achavam-se mais horríveis e mais monstruosos do que a Quimera, vencida por Belerofonte, a Hidra de Lerna abatida por Hércules, ou mesmo Cérbero, embora vomite pelas três goelas escancaradas um sangue negro e venenoso que é capaz de empestar toda a raça dos mortais que vivem na terra.
“Ao mesmo tempo, de outro lado, outra fúria lhes repetia com insulto todas as lisonjas que seus aduladores lhes haviam feito durante a vida, e apresentava-lhes outro espelho, no qual eles se viam tais como a lisonja os retratara. A oposição dessas duas pinturas tão contrárias era o suplício de sua vaidade. Notava-se que os mais malvados desses reis eram aqueles a quem se fizeram as lisonjas mais magníficas durante a vida, porque os malvados são mais temidos do que os bons, e eles exigem sem pudor as covardes lisonjas dos poetas e dos oradores de seu tempo.
“Ouvem-se-nos gemer nessas profundas trevas, onde podem ver somente os insultos e os escárnios que têm de aguentar. Não têm à sua volta nada que não os repila, não os contradiga, que não os confunda; ao passo que na terra não davam importância à vida dos homens, e pretendiam que tudo era feito para servi-los. No Tártaro eles são entregues a todos os caprichos de alguns escravos que lhes fazem sentir por sua vez uma cruel servidão: eles servem com dor, e não lhes resta nenhuma esperança de poder jamais abrandar o cativeiro; apanham desses escravos, que se tornaram seus tiranos implacáveis, como uma bigorna apara os golpes dos martelos dos Ciclopes, quando Vulcano os força a trabalhar nas fornalhas ardentes do monte Etna.
“Ali Telêmaco avistou rostos pálidos, hediondos e consternados. É uma tristeza negra que rói esses criminosos; têm horror de si mesmos, e não podem libertar-se desse horror tal como de sua própria natureza; não precisam de outro castigo que o de suas faltas, suas próprias faltas: veem-nas sem cessar em toda sua enormidade; elas se lhes apresentam como espectros horríveis, perseguem-nos. Para se proteger, eles procuram uma morte mais poderosa do que aquela que os separou de seus corpos. No desespero em que se encontram, pedem socorro a uma morte que possa extinguir neles todo sentimento e todo conhecimento; pedem aos abismos para que os engulam a fim de se livrarem dos raios vingadores da verdade que os persegue, mas estão reservados à vingança que destila sobre eles gota a gota, e que não se esgotará jamais. A verdade, que eles temeram ver, faz seu suplício; eles a veem, têm olhos apenas para vê-la erguer-se contra eles: sua visão transpassa-os, dilacera-os, arrancaos a si mesmos; ela é como o raio; sem destruir nada por fora, penetra até o fundo das entranhas.
“Entre esses objetos que faziam os cabelos de Telêmaco ficar em pé, ele viu vários dos antigos reis da Lídia que eram punidos por terem preferido as delícias de uma vida fácil ao trabalho, para o alívio dos povos, que deve ser inseparável da realeza.
“Esses reis acusavam-se mutuamente de cegueira. Um dizia ao outro, que fora seu filho: Não vos recomendara eu muitas vezes, durante minha velhice e antes de morrer, reparardes os males que eu fizera por negligência? Ah! Pai desgraçado! dizia o filho, fostes vós que me perdestes! Foi vosso exemplo que me inspirou o fausto, o orgulho, a volúpia e a dureza para com os homens! Vendo-vos reinar com tanta frouxidão e cercado de covardes aduladores, acostumei-me a gostar da adulação e dos prazeres. Acreditei que o resto dos homens era, em relação aos reis, o que os cavalos e as outras bestas de carga são em relação aos homens, ou seja, animais dos quais não se faz caso a não ser enquanto prestam serviços e dão comodidades. Eu acreditei, sois vós que me fizestes crer nisso; e agora sofro tantos males por vos ter imitado. A essas acusações acrescentavam as mais horrorosas maldições, e pareciam tomados de raiva para se dilacerarem mutuamente.
“Em torno desses reis esvoaçavam ainda, como corujas à noite, as cruéis suspeitas, os vãos alarmes, as desconfianças que vingam os povos da dureza de seus reis, a fome insaciável de riquezas, a falsa glória sempre tirânica e a frouxidão covarde que redobra todos os males de que se sofre, sem nunca poder dar prazeres sólidos.
“Viam-se vários desses reis severamente punidos, não pelos males que fizeram, mas por terem negligenciado o bem que deveriam ter feito. Todos os crimes dos povos, que vêm da negligência com a qual se fazem observar as leis, eram imputados aos reis, que devem reinar apenas a fim de que as leis reinem por seu ministério. Imputavam-se-lhes também todas as desordens que vêm do fausto, do luxo e de todos os outros excessos que jogam os homens num estado violento e na tentação de desprezar as leis para adquirir bens. Sobretudo tratavam-se rigorosamente os reis que, em vez de serem bons e vigilantes pastores do povo, só pensaram em devastar o rebanho, como lobos devoradores.
“Mas o que mais consternou Telêmaco foi ver, nesse abismo de trevas e de males, um grande número de reis que, tendo passado na terra por reis bastante bons, foram condenados às penas do Tártaro por se terem deixado governar por homens maus e artificiosos. Eram punidos pelos males que deixaram fazer por sua autoridade. Ademais, a maioria desses reis não fora nem boa nem má, tão grande fora sua fraqueza; jamais temeram não conhecer a verdade; não tiveram gosto pela virtude, e não tiveram o prazer de fazer o bem.”
Quadro do inferno cristão
11. - A opinião dos teólogos sobre o inferno está resumida nas citações a seguir. * Esta descrição, sendo extraída dos autores sagrados e da vida dos santos, pode tanto mais ser considerada como a expressão da fé ortodoxa na matéria, quanto ela é a cada instante reproduzida, com pequenas variantes, nos sermões da cátedra evangélica e nas instruções pastorais.
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* Estas citações são tiradas da obra intitulada: o Inferno, por Auguste Callet.
12. - “Os demônios são puros Espíritos, e os condenados, presentemente no inferno, podem também ser considerados como puros Espíritos, visto que só sua alma aí desceu, e que suas ossadas entregues ao pó se transformam incessantemente em ervas, em plantas, em frutos, em minerais, em líquidos, sofrendo, sem saber, as contínuas metamorfoses da matéria. Mas os condenados, como os santos, devem ressuscitar no último dia, e retomar, para não mais o deixar, um corpo carnal, o mesmo corpo sob o qual foram conhecidos entre os vivos. O que os distinguirá uns dos outros é que os eleitos ressuscitarão num corpo purificado e todo radioso, os condenados num corpo maculado e deformado pelo pecado. Portanto, não haverá mais no inferno somente puros Espíritos; haverá homens como nós. O inferno é, por conseguinte, um lugar físico, geográfico, material, visto que será povoado de criaturas terrestres, tendo pés, mãos, boca, língua, dentes, orelhas, olhos semelhantes aos nossos, e sangue nas veias, e nervos sensíveis à dor.
Onde está situado o inferno? Alguns doutores colocaram-no nas entranhas mesmas da nossa terra; outros, em não sei qual planeta; mas a questão não foi decidida por nenhum concílio. Está-se, portanto, sobre este ponto, reduzido às conjeturas; a única coisa que se afirma, é que o inferno, seja qual for o lugar em que estiver situado, é um mundo composto de elementos materiais, mas um mundo sem sol, sem lua, sem estrelas, mais triste, mais inóspito, mais desprovido de todo germe e de toda aparência de bem do que as partes mais inabitáveis deste mundo onde pecamos.
“Os teólogos circunspectos não se arriscam a pintar, à maneira dos egípcios, dos hindus e dos gregos, todos os horrores dessa morada; eles se limitam a mostrar-nos dela, como uma amostra, o pouco que a Escritura desvela, a lagoa de fogo e de enxofre do apocalipse, e os vermes de Isaías, esses vermes eternamente pululando sobre as carcaças do Thophel, e os demônios atormentando os homens que perderam, e os homens chorando e rangendo os dentes, segundo a expressão dos Evangelistas.
“Santo Agostinho não concorda que essas penas físicas sejam simples imagens das penas morais; ele vê, numa verdadeira lagoa de enxofre, vermes e serpentes verdadeiros encarniçando-se sobre todas as partes do corpo dos condenados e juntando suas mordidas às do fogo. Ele pretende, segundo um versículo de São Marcos, que esse fogo estranho, embora material como o nosso, e agindo sobre corpos materiais, conservá-los-á como o sal conserva a carne das vítimas. Mas os condenados eternos, vítimas sempre sacrificadas e sempre vivas, sentirão a dor desse fogo que queima sem destruir; ele penetrará sob sua pele; eles ficarão embebidos dele e saturados em todos os membros, e na medula dos seus ossos, e na pupila dos seus olhos, e nas fibras mais recônditas e mais sensíveis de seu ser. A cratera de um vulcão, se pudessem nela mergulhar, seria para eles um lugar de refrigério e de repouso.
“Assim falam, com toda a segurança, os teólogos mais tímidos, mais discretos, mais reservados; não negam, aliás, que haja no inferno outros suplícios corporais; dizem somente que, para falar disso, não têm um conhecimento suficiente, tão positivo, ao menos, do que o que lhes foi dado do horrível suplício do fogo e do nojento suplício dos vermes. Mas há teólogos mais arrojados ou mais esclarecidos que fazem do inferno descrições mais detalhadas, mais variadas e mais completas; e, ainda que não se saiba em que lugar do espaço esse inferno está situado, há santos que o viram. Não foram de lira em punho, como Orfeu, ou de espada em punho, como Ulisses; foram lá transportados em Espírito. Santa Teresa é desse número.
“Pareceria, segundo o relato da santa, que há cidades no inferno; ela viu ali, pelo menos, uma espécie de ruela longa e estreita, como há tantas nas velhas cidades; ela entrou lá, andando com horror num terreno lamacento, fétido, onde pululavam monstruosos répteis; mas foi detida em sua marcha por uma muralha que barrava a ruela; nessa muralha havia um nicho onde Teresa se enfiou, sem nem saber como isso aconteceu. Era, disse ela, o lugar que lhe estava destinado, se abusasse, em vida, das graças que Deus espalhava sobre sua cela de Ávila. Embora se tivesse introduzido com maravilhosa facilidade nesse nicho de pedra, não podia, no entanto, nem sentar-se, nem deitar-se, nem ficar de pé: nem tampouco podia sair dali; essas horríveis muralhas, tendo-se abaixado sobre ela, envolviam-na, apertavam-na, como se fossem animadas. Pareceu-lhe que a asfixiavam, a estrangulavam, e, ao mesmo tempo, que a esfolavam viva e a retalhavam. E ela sentia-se queimar, e experimentava simultaneamente todos os gêneros de angústias. Nenhuma esperança de socorro; à sua volta, apenas trevas, e, no entanto, através dessas trevas, ela distinguia ainda, não sem espanto, a hedionda rua onde estava enfiada e toda sua vizinhança imunda, espetáculo para ela tão intolerável quanto os apertos de sua prisão.*
“Não era sem dúvida senão um cantinho do inferno. Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos. Viram no inferno grandes cidades em fogo, Babilônia e Nínive, mesmo Roma, seus palácios e templos incendiados, e todos os habitantes acorrentados, o traficante ao seu balcão, padres reunidos com cortesãos em salas de festins, e urrando em seus assentos dos quais não se podiam mais arrancar, e levando aos lábios, para matar a sede, taças de onde saíam chamas; criados de joelhos, dentro de cloacas ferventes, de braços estendidos, e príncipes de cuja mão escorria sobre eles, em lava devorante, ouro fundido. Outros viram no inferno planícies sem limites que camponeses famélicos cavavam e semeavam, e como dessas planícies fumegantes de seu suor, e dessas semeaduras estéreis, nada nascia, esses camponeses se entre devoravam; depois disso, tão numerosos quanto antes, tão magros, tão esfomeados, dispersavam-se em bandos até o horizonte, indo buscar ao longe, mas em vão, terras mais aventuradas, e logo eram substituídos, nos campos que abandonavam, por outras colônias errantes de condenados às penas eternas. Houve outros que viram no inferno montanhas cheias de precipícios, florestas gementes, poços sem água, fontes alimentadas pelas lágrimas, riachos de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas de desesperados vogando sobre mares sem praias. Reviu-se aí, numa palavra, tudo o que os pagãos ali viam, um reflexo lúgubre da terra, uma sombra desmedidamente aumentada de suas misérias, seus sofrimentos naturais eternizados, e até os calabouços e patíbulos, e instrumentos de tortura que nossas próprias mãos forjaram.
“Há lá em baixo, com efeito, demônios que, para melhor atormentar os homens em seus corpos, tomam corpos. Estes têm asas de morcego, chifres, couraças de escamas, patas com garras, dentes agudos; são-nos mostrados armados de gládios, de forcados, de pinças, de tenazes ardentes, de serras, de grelhas, de foles, de clavas, e fazendo, durante a eternidade, com carne humana, o ofício de cozinheiros e açougueiros; aqueles, transformados em leões ou em víboras enormes, arrastando suas presas para cavernas solitárias; alguns transformam-se em corvos, para arrancar os olhos a certos culpados, e outros em dragões voadores, para carregá-los nas costas e levá-los apavorados, sangrando, gritando através dos espaços tenebrosos, e depois deixá-los cair de novo na lagoa de enxofre. Aqui nuvens de gafanhotos, escorpiões gigantescos, cuja visão dá arrepios, cujo odor dá náuseas, cujo mínimo toque dá convulsões; lá, monstros policéfalos, abrindo de todos os lados goelas vorazes, sacudindo sobre as cabeças disformes crinas de víboras, triturando os reprovados entre as mandíbulas sangrentas, e vomitando-os todos moídos, mas vivos, porque são imortais.
“Esses demônios de forma sensível, que lembram tão nitidamente os deuses do Amenthi e do Tártaro, e os ídolos que os fenícios, os moabitas e os outros gentios vizinhos da Judeia adoravam, esses demônios não agem ao acaso; cada um tem sua função e sua obra; o mal que fazem no inferno está em relação com o mal que inspiraram e fizeram cometer na Terra. ** Os condenados Em verdade, singular punição essa que consiste em poder continuar, em maior escala, o mal que fizeram em menor escala na Terra! Seria mais racional que eles próprios sofressem as consequências desse mal, em vez de se darem ao prazer de imputá-lo aos outros. são punidos em todos os seus sentidos e em todos os seus órgãos, porque ofenderam Deus por todos os seus sentidos e por todos os seus órgãos; punidos de uma maneira como gulosos, pelos demônios da gula, e de outra maneira como preguiçosos, pelos demônios da preguiça, e de outra como fornicadores, pelos demônios da fornicação, e de tantas maneiras quanto há diversas maneiras de pecar. Eles terão frio queimando, e calor gelando; estarão ávidos de repouso e ávidos de movimento; e sempre esfomeados, e sempre sedentos, e mil vezes mais cansados do que o escravo no fim do dia, mais doentes do que os moribundos, mais abatidos, mais alquebrados, mais cobertos de feridas do que os mártires, e isso não acabará.
“Nenhum demônio se desanima, nem jamais se desanimará de sua horrenda tarefa; eles são todos, sob esse aspecto, bem disciplinados, e fiéis a executar as ordens de vingadores que receberam. Sem isso, o que se tornaria o inferno? Os pacientes descansariam se os carrascos acabassem por brigar ou cansar-se. Mas não há repouso para uns, nem brigas entre os outros; por mais malvados que sejam, e incontáveis, os demônios se entendem de uma ponta à outra do abismo, e nunca se viram na terra nações mais dóceis a seus príncipes, exércitos mais obedientes a seus chefes, comunidades monásticas mais humildemente submissas a seus superiores. ***
“Não se conhece muito, aliás, a populaça dos demônios, esses espíritos vis dos quais são compostas as legiões de vampiros, de vampiras, de sapos, escorpiões, corvos, hidras, salamandras e outros animais sem nome, que constituem a fauna das regiões infernais; mas conhecem-se e nomeiam-se vários dos príncipes que comandam essas legiões, entre outros Belfegor, o demônio da luxúria, Abaddon ou Apolyon, o demônio do homicídio, Belzebu, o demônio dos desejos impuros, ou o senhor das moscas, que engendram a corrupção; e Mamon, o demônio da avareza, e Moloch, e Belial, e Baalgad e Astaroth, e tantos outros, e acima deles seu chefe universal, o sombrio arcanjo que tinha no céu o nome de Lúcifer, e usa no inferno o de Satã.
“Eis, em resumo, a ideia que nos dão do inferno, considerado do ponto de vista de sua natureza física e das penas físicas que aí se sofrem. Consultai os escritos dos Doutores da Igreja; interrogai nossas piedosas lendas; olhai as esculturas e os quadros de nossas igrejas; prestai ouvidos ao que se diz em nossas cátedras, e aprendereis muito mais.
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* Reconhecemos, nessas visões, todos os caracteres dos pesadelos; é, pois, provável, ter sido um efeito desse gênero que se produziu com Santa Teresa.
** Em verdade, singular punição essa que consiste em poder continuar, em maior escala, o mal que fizeram em menor escala na Terra! Seria mais racional que eles próprios sofressem as consequências desse mal, em vez de se darem ao prazer de imputá-lo aos outros.
*** Esses mesmos demônios, rebeldes a Deus para o bem, são de uma docilidade exemplar para fazer o mal; nenhum deles recua nem abranda a marcha durante a eternidade. Que estranha metamorfose se operou neles, que haviam sido criados puros e perfeitos como os anjos!
Não é bem singular vê-los dar exemplo de perfeita compreensão, de harmonia, de concórdia inabalável, enquanto os homens não sabem viver em paz e se entredilaceram na Terra? Vendo o luxo dos castigos reservados aos danados, e comparando sua situação com as dos demônios, nos perguntamos quem deve ser mais lamentado: os carrascos ou as vítimas?
13. - O autor faz após este quadro as seguintes reflexões, cujo alcance todos compreenderão:
“A ressurreição dos corpos é um milagre; mas é preciso um segundo milagre para dar a esses corpos mortais, já gastos uma vez pelas passageiras provas da vida, aniquilados já uma vez, a virtude de subsistir, sem se dissolverem, numa fornalha onde os metais se evaporariam. Que se diga que a alma é seu próprio carrasco, que Deus não a persegue, mas que ele a abandona no estado desventurado que ela escolheu, isso pode compreender-se com todo o rigor, embora o abandono eterno de um ser perdido e sofredor pareça pouco conforme à bondade do Criador; mas o que se diz da alma e das penas espirituais, não se pode, de maneira nenhuma, dizer dos corpos e das penas corporais; para perpetuar essas penas corporais, não basta que Deus retire sua mão, é preciso, ao contrário, que ele a mostre, que intervenha, que aja, sem o que o corpo sucumbiria.
“Os teólogos supõem, portanto, que Deus opera efetivamente, após a ressurreição, esse segundo milagre de que falamos. Ele tira primeiro, do sepulcro que os devorara, nossos corpos de argila; retira-os tal como aí entraram, com suas enfermidades originais e as degradações sucessivas da idade, da doença e do vício; ele devolve-os a nós nesse estado, decrépitos, friorentos, gotosos, cheios de necessidades, sensíveis a uma picada de abelha, todos cobertos dos estigmas que a vida e a morte aí imprimiram, e é esse o primeiro milagre; depois, a esses corpos débeis, prontos a retornar ao pó do qual saem, ele inflige uma propriedade que eles nunca tiveram, e eis o segundo milagre; ele lhes inflige a imortalidade, esse mesmo dom que, na sua cólera, dizei antes na sua misericórdia, ele retirara de Adão à saída do Éden. Quando Adão era imortal, era invulnerável, e quando cessou de ser invulnerável, tornouse mortal; a morte seguiu de perto a dor.
“A ressurreição não nos restabelece, portanto, nem nas condições físicas do homem inocente, nem nas condições físicas do homem culpado; é somente uma ressurreição de nossas misérias, mas com uma sobrecarga de misérias novas, infinitamente mais horríveis; é, em parte, uma verdadeira criação, e a mais maliciosa que a imaginação tenha ousado conceber. Deus muda de ideia, e para juntar aos tormentos espirituais tormentos carnais que possam durar para sempre, ele muda bruscamente, por um efeito de seu poder, as leis e as propriedades por ele mesmo atribuídas, desde o começo, aos compostos da matéria; ressuscita carnes doentes e corrompidas, e amarrando com um nó indestrutível esses elementos que tendem a se separar por si mesmos, ele mantém e perpetua, contra a ordem natural, essa podridão viva; ele joga-a no fogo, não para purificá-la, mas para conservá-la tal qual ela é, sensível, sofredora, ardente, horrível, tal qual ele a quer, imortal.
“Faz-se de Deus, por esse milagre, um dos carrascos do inferno, pois se os condenados não podem imputar senão a si mesmos seus males espirituais, podem, em contrapartida, atribuir os outros a Ele. Era demasiado pouco, aparentemente, abandoná-los após a morte à tristeza, ao arrependimento e a todas as angústias de uma alma que sente que perdeu o bem supremo; Deus irá, segundo os teólogos, buscá-los nessa noite, no fundo do abismo; ele os trará um momento à luz, não para consolá-los, mas para revesti-los de um corpo hediondo, flamejante, imperecível, mais contaminado do que a túnica de Dejanira, e só então ele os abandona para sempre.
“Ele nem mesmo os abandona, visto que o inferno só subsiste, assim como a terra e o céu, por um ato permanente da sua vontade, sempre ativa, e tudo se desfaria se ele cessasse de sustentá-lo. Ele manterá então incessantemente a mão sobre eles para impedir seu fogo de se extinguir e seus corpos de se consumir, querendo que esses desgraçados imortais contribuam, pela perenidade de seu suplício, para a edificação dos eleitos.”
14. - Dissemos, com razão, que o inferno dos cristãos exagerara o dos pagãos. No Tártaro, com efeito, veem-se os culpados torturados pelo remorso, sempre diante de seus crimes e de suas vítimas, oprimidos por aqueles que haviam oprimido durante a vida; veem-se fugir da luz que os penetra, e procurar em vão escapar aos olhares que os perseguem; o orgulho é aí abaixado e humilhado; todos carregam os estigmas de seu passado; todos são punidos por suas próprias faltas, a tal ponto que, para alguns, basta abandoná-los a si mesmos, e se julga inútil acrescentar outros castigos. Mas são sombras, ou seja, almas com seus corpos fluídicos, imagem de sua existência terrestre; não se veem os homens retomarem seu corpo carnal para sofrer materialmente, nem o fogo penetrar sob sua pele e saturá-los até à medula dos ossos, nem o luxo e o refinamento de suplícios que fazem a base do inferno moderno. Encontram-se lá juízes inflexíveis mas justos, que proporcionam a pena à falta, ao passo que no império de Satã, todos são confundidos nas mesmas torturas; tudo se baseia na materialidade; mesmo a equidade é banida.
Hoje em dia há, sem dúvida, na própria Igreja, muitos homens sensatos que não admitem essas coisas ao pé da letra e veem nelas apenas alegorias cujo sentido é preciso apreender; mas sua opinião é somente individual e não constitui lei. A crença no inferno material com todas as suas consequências, no entanto, ainda é um artigo de fé.
15. - Pergunta-se como homens puderam ver essas coisas no êxtase se elas não existem. Não é aqui o lugar de explicar a fonte das imagens fantásticas que se produzem às vezes com as aparências da realidade. Diremos somente que é preciso ver nisso uma prova do princípio de que o êxtase é a menos segura de todas as revelações,* porque esse estado de sobre excitação não é sempre efeito de um desprendimento da alma tão completo quanto se poderia crer, e encontra-se aí com muita frequência o reflexo das preocupações da véspera. As ideias das quais o espírito é nutrido e das quais o cérebro, ou melhor, o envoltório perispiritual correspondente ao cérebro, conservou a impressão, reproduzem-se amplificadas como numa miragem, sob formas vaporosas que se cruzam e se confundem, e compõem conjuntos bizarros. Os extáticos de todos os cultos sempre viram coisas em relação com a fé de que estavam penetrados; não é então surpreendente que aqueles que, como Santa Teresa, estão fortemente imbuídos das ideias do inferno, tais como as apresentam as descrições verbais ou escritas e os quadros, tenham visões que não são, propriamente falando, senão a reprodução daquelas, e produzam o efeito de um pesadelo. Um pagão cheio de fé teria visto o Tártaro e as Fúrias, como teria visto no Olimpo Júpiter empunhando o raio.
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* Livro dos Espíritos, nos 443 e 444.
1.– O Evangelho não faz nenhuma menção ao purgatório, que só foi admitido pela Igreja no ano de 593. É seguramente um dogma mais racional e mais consoante a justiça de Deus do que o inferno, visto que estabelece penas menos rigorosas, e resgatáveis para faltas de gravidade mediana. O princípio do purgatório é, pois, baseado na equidade, porque, comparado à justiça humana, é a detenção temporária ao lado da condenação perpétua. O que se pensaria de um país que tivesse somente a pena de morte para os crimes e para os simples delitos? Sem o purgatório, há para as almas apenas duas alternativas extremas: a felicidade absoluta ou o suplício eterno. Nesta hipótese, o que se tornam as almas culpadas somente de faltas leves? Ou elas compartilham a felicidade dos eleitos sem serem perfeitas, ou sofrem o castigo dos maiores criminosos sem terem feito muito mal, o que não seria nem justo nem racional.
2. – Mas a noção do purgatório devia necessariamente ser incompleta; é por isso que, conhecendo somente a pena do fogo, fez-se dele um diminutivo do inferno; as almas também queimam aí, mas com um fogo menos intenso. Sendo o progresso inconciliável com o dogma das penas eternas, as almas não saem daí em consequência de seu avanço, mas pela virtude das preces feitas ou que se mandam fazer por elas. Se o pensamento inicial foi bom, não acontece o mesmo com as suas consequências, pelos abusos que originou. Por meio de preces pagas, o purgatório se tornou uma mina mais produtiva do que o inferno. *
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* O purgatório deu origem ao comércio escandaloso das indulgências, com o auxílio das quais se vendia a entrada no céu. Esse abuso foi a primeira causa da Reforma, e foi o que fez Lutero rejeitar o purgatório.
3. – O lugar do purgatório nunca foi determinado, nem a natureza das penas que aí se suportam claramente definida. Estava reservado à revelação nova preencher esta lacuna, explicando-nos as causas das misérias da vida terrestre, cuja justiça só a pluralidade das existências podia nos mostrar. Essas misérias são necessariamente resultado das imperfeições da alma, pois se a alma fosse perfeita, não cometeria faltas e não teria de sofrer-lhes as consequências. O homem que fosse sóbrio e moderado em tudo, por exemplo, não seria vítima das doenças engendradas pelos excessos. Quase sempre, ele é desgraçado aqui embaixo por sua própria culpa; mas se é imperfeito, é porque o era antes de vir para a Terra; ele expia aí não só suas faltas atuais, mas as faltas anteriores que não reparou; suporta numa vida de provas o que fez suportar aos outros numa outra existência. As vicissitudes que experimenta são simultaneamente um castigo temporário e um aviso das imperfeições de que se deve desfazer para evitar as desgraças futuras e progredir rumo ao bem. São para a alma as lições da experiência, lições por vezes rudes, mas tanto mais proveitosas para o futuro quanto mais profunda for a impressão que deixam. Essas vicissitudes são a ocasião de lutas incessantes que desenvolvem suas forças e suas faculdades morais e intelectuais, fortalecem-na no bem, e das quais ela sai sempre vitoriosa, se tiver a coragem de sustentá-la até o fim. O prêmio da vitória está na vida espiritual, na qual ela entra radiosa e triunfante, como o soldado que sai do combate e vem receber a palma gloriosa.
4. – Cada existência é para a alma a ocasião de um passo adiante; de sua vontade depende que esse passo seja o maior possível, transpor vários níveis ou permanecer no mesmo ponto; neste último caso, ela sofreu sem proveito; e como sempre é preciso, cedo ou tarde, pagar sua dívida, ela precisará recomeçar uma nova existência em condições ainda mais penosas, porque a uma mácula não apagada ela acrescenta outra mácula. É portanto nas encarnações sucessivas que a alma se desprende pouco a pouco de suas imperfeições, que ela se purga, numa palavra, até que seja bastante pura para merecer deixar os mundos de expiação por mundos mais felizes, e mais tarde estes para gozar da felicidade suprema. O purgatório não é mais, então, uma ideia vaga e incerta; é uma realidade material que vemos, tocamos e sofremos; ele está nos mundos de expiação, e a terra é um desses mundos; os homens expiam aí seu passado e seu presente em benefício de seu futuro. Mas, contrariamente à ideia que dele se faz, depende de cada um abreviar ou prolongar aí sua estada, segundo o grau de avanço e de depuração ao qual ele chegou por seu trabalho sobre si mesmo; sai-se daí, não porque seu tempo acabou ou pelos méritos de outrem, mas devido a seu próprio mérito, segundo estas palavras do Cristo: “A cada um segundo suas obras”, palavras que resumem toda a justiça de Deus.
5. – Então, aquele que sofre nesta vida deve dizer a si mesmo que é porque não se purificou suficientemente em sua existência anterior, e que, se não o fizer nesta, sofrerá ainda na seguinte. Isto é simultaneamente equitativo e lógico. Sendo o sofrimento inerente à imperfeição, sofre-se enquanto se é imperfeito, como se sofre de uma doença enquanto não se está curado. É assim que enquanto um homem for orgulhoso, sofrerá as consequências do orgulho; enquanto for egoísta, sofrerá as consequências do egoísmo.
6. – O Espírito culpado sofre primeiro na vida espiritual em razão do grau de suas imperfeições; depois, a vida corpórea lhe é dada como meio de reparação; é por isso que ele se reencontra aí, seja com as pessoas que ofendeu, seja em meios análogos àqueles onde cometeu o mal, seja em situações que são sua contrapartida, como, por exemplo, estar na miséria se foi mau rico, numa condição humilhante se foi orgulhoso. A expiação, no mundo dos Espíritos e na terra, não é um duplo castigo para o Espírito; é o mesmo castigo que continua na terra, como complemento, visando facilitar-lhe o aperfeiçoamento por um trabalho efetivo; depende dele aproveitá-lo. Não vale mais para ele voltar à terra com a possibilidade de alcançar o céu, do que ser condenado sem remissão deixando-a? Esta liberdade que lhe é concedida é uma prova da sabedoria, da bondade e da justiça de Deus, que quer que o homem deva tudo a seus esforços e seja o artífice de seu futuro; se ele é infeliz, e se o é durante mais ou menos tempo, não pode acusar senão a si mesmo: a via do progresso está sempre aberta para ele.
7. – Se considerarmos quão grande é o sofrimento de certos Espíritos culpados no mundo invisível, quão terrível é a situação de alguns, a que ansiedades estão sujeitos, e quanto essa posição é tornada mais penosa pela impotência em que se encontram de lhe ver o fim, poder-se-ia dizer que é para eles o inferno, se essa palavra não implicasse a ideia de um castigo eterno e material. Graças à revelação dos Espíritos, e aos exemplos que eles nos oferecem, sabemos que a duração da expiação está subordinada ao aperfeiçoamento do culpado.
8. – O Espiritismo não vem portanto negar a penalidade futura; vem, ao contrário, constatá-la. O que ele destrói é o inferno localizado, com suas fornalhas e suas penas irremissíveis. Ele não nega o purgatório, visto que prova que nós estamos nele; ele define-o e precisa-o, explicando a causa das misérias terrestres, e dessa forma faz crer nele aqueles que o negavam.
Ele rejeita as preces pelos mortos? Bem ao contrário, visto que os Espíritos sofredores as solicitam; ele faz disso um dever de caridade e demonstra sua eficácia para trazê-los de volta ao bem, e, por esse meio, abreviar seus tormentos.* Falando à inteligência, ele trouxe de volta a fé aos incrédulos, e à prece aqueles que zombavam dela. Mas diz que a eficácia das preces está no pensamento e não nas palavras, que as melhores são as do coração e não as dos lábios, as que se faz, e não as que se manda fazer por dinheiro. Quem ousaria então censurá-lo por isso?
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* Ver Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XXVII: Ação da prece.
9. – Quer o castigo ocorra na vida espiritual ou na terra, e seja qual for sua duração, ele sempre tem um fim, mais ou menos afastado ou próximo. Há, pois, em realidade, apenas duas alternativas para o Espírito: punição temporária graduada segundo a culpa, e recompensa graduada segundo o mérito. O Espiritismo repele a terceira alternativa, a da danação eterna. O inferno permanece como figura simbólica dos maiores sofrimentos cujo termo é ignorado. O purgatório é a realidade. A palavra purgatório evoca a ideia de um lugar circunscrito: por isso ela se aplica mais naturalmente à terra, considerada como lugar de expiação, do que ao espaço infinito onde erram os Espíritos sofredores, e além disso a natureza da expiação terrestre é uma verdadeira expiação. Quando os homens se tiverem aperfeiçoado, fornecerão ao mundo invisível apenas bons Espíritos, e estes, encarnando-se, fornecerão à humanidade corporal apenas elementos aperfeiçoados; então, a terra deixando de ser um mundo de expiação, os homens não sofrerão mais as misérias que são as consequências de suas imperfeições. É essa transformação que ocorre neste momento e que elevará a Terra na hierarquia dos mundos. (Ver Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III).
10. – Por que então o Cristo não falou do purgatório? É que, não existindo a ideia, não havia palavra para representá-la. Ele serviu-se da palavra inferno, a única que era usada, como termo genérico, para designar as penas futuras sem distinção. Se, ao lado da palavra inferno ele tivesse posto uma palavra equivalente a purgatório, não teria podido precisar seu sentido verdadeiro sem antecipar uma questão reservada ao futuro; teria sido, além disso, consagrar a existência de dois lugares especiais de castigos. O inferno, em sua acepção geral, despertando a ideia de punição, encerrava implicitamente a do purgatório, que é apenas um modo de penalidade. O futuro, devendo esclarecer os homens sobre a natureza das penas, devia, por isso mesmo, reduzir o inferno a seu justo valor. Visto que a Igreja acreditou dever, depois de seis séculos, reparar o silêncio de Jesus decretando a existência do purgatório, é porque pensou que ele não dissera tudo. Por que não ocorreria isso com outros pontos como com este?
Origem da doutrina das penas eternas
1. – A crença na eternidade das penas perde a cada dia tanto terreno que, sem ser profeta, se pode prever seu fim próximo. Ela foi combatida por argumentos tão poderosos e tão peremptórios que parece quase supérfluo ocupar-se dela doravante, e que basta deixá-la extinguir-se. No entanto, não se pode dissimular que, por mais caduca que esteja, ainda constitui o ponto de reunião dos adversários das ideias novas, aquele que eles defendem com mais obstinação, porque é um dos lados mais vulneráveis e eles preveem as consequências de sua queda. Deste ponto de vista, esta questão merece um exame sério.
2. – A doutrina das penas eternas, como a do inferno material, teve sua razão de ser, enquanto esse temor podia ser um freio para os homens pouco avançados intelectual e moralmente. Assim como teriam ficado apenas pouco ou nada impressionados pela ideia de penas morais, não teriam ficado mais impressionados pela de penas temporais; nem mesmo teriam compreendido a justiça das penas graduais e proporcionais, porque não estavam aptos a apreender as nuances muitas vezes delicadas do bem e do mal, nem o valor relativo das circunstâncias atenuantes ou agravantes.
3. - Quanto mais próximos os homens estão do estado primitivo, mais são materiais; o senso moral é o que neles se desenvolve mais tardiamente. Por esta mesma razão, só podem fazer uma ideia muito imperfeita de Deus e de seus atributos, e uma ideia não menos vaga da vida futura. Identificam Deus à sua própria natureza; é para eles um soberano absoluto, tanto mais temível quanto invisível, como um monarca déspota que, oculto em seu palácio, nunca se mostra aos súditos. Ele é poderoso somente por sua força material, pois eles não compreendem o poder moral; veem-no apenas armado com o raio, ou no meio dos relâmpagos e das tempestades, semeando à sua passagem ruína e desolação, segundo o exemplo dos guerreiros invencíveis. Um Deus de brandura e de misericórdia não seria um Deus, mas um ser fraco que não poderia fazer-se obedecer. A vingança implacável, os castigos terríveis, eternos, não tinham nada contrário à ideia que eles faziam de Deus, nada que repugnasse à sua razão. Eles mesmos implacáveis em seus ressentimentos, cruéis com os inimigos, sem compaixão pelos vencidos, Deus, que lhes era superior, devia ser ainda mais terrível.
Para tais homens, precisava-se de crenças religiosas assimiláveis à sua natureza ainda rude. Uma religião completamente espiritual, toda de amor e caridade, não se podia aliar com a brutalidade dos costumes e das paixões. Portanto, não censuremos Moisés por sua legislação draconiana, que mal bastava para conter seu povo indócil, nem por ter feito de Deus um Deus vingativo. Precisava-se disso naquela época; a doce doutrina de Jesus não teria encontrado eco e teria sido impotente.
4. – À medida que o Espírito se desenvolveu, o véu material dissipou-se pouco a pouco, e os homens tornaram-se mais aptos a compreender as coisas espirituais; mas isso aconteceu apenas gradualmente. Quando Jesus veio, pôde anunciar um Deus clemente, falar de seu reino que não é deste mundo, e dizer aos homens: “Amai-vos uns aos outros, fazei o bem aos que vos odeiam;” ao passo que os antigos diziam: “Olho por olho, dente por dente.”
Ora, quais eram os homens que viviam no tempo de Jesus? Eram almas recém criadas e encarnadas? Se assim era, Deus teria então criado no tempo de Jesus almas mais avançadas do que no tempo de Moisés. Mas, então, o que teria acontecido a estas últimas? Teriam permanecido durante a eternidade no embrutecimento? O simples bom senso repele essa suposição. Não; eram as mesmas almas que, depois de terem vivido sob o império da lei mosaica, tinham, ao longo de várias existências, adquirido um desenvolvimento suficiente para compreender uma doutrina mais elevada, e que hoje estão suficientemente avançadas para receber um ensinamento ainda mais completo.
5. - No entanto, o Cristo não pôde revelar a seus contemporâneos todos os mistérios do futuro; ele mesmo disse: “Teria ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não as compreenderíeis; é por isso que vos falo por parábolas.” Sobre tudo o que se refere à moral, ou seja, os deveres de homem para homem, ele foi muito explícito, porque, tocando na corda sensível da vida material, ele sabia ser compreendido; sobre os outros pontos, ele se limita a semear, sob forma alegórica, os germes do que deverá ser desenvolvido mais tarde.
A doutrina das penas e das recompensas futuras pertence a esta última ordem de ideias. A respeito das penas, sobretudo, não podia romper bruscamente com as ideias estabelecidas. Ele vinha traçar aos homens novos deveres: a caridade e o amor ao próximo substituindo o espírito de ódio e de vingança, a abnegação substituindo o egoísmo: já era muito; ele não podia racionalmente enfraquecer o temor do castigo reservado aos prevaricadores, sem enfraquecer ao mesmo tempo a ideia do dever. Prometia o reino dos céus aos bons; esse reino era, portanto, proibido aos maus; para onde iriam eles? Era preciso uma contrapartida de natureza a impressionar inteligências ainda demasiado materiais para se identificarem com a vida espiritual; pois não se deve perder de vista que Jesus se dirigia ao povo, à parte menos esclarecida da sociedade, para a qual se precisava de imagens de algum modo palpáveis, e não ideias sutis. É por isso que ele não entra a esse respeito em detalhes supérfluos: bastava-lhe opor uma punição à recompensa; não era necessário acrescentar mais naquela época.
6. – Se Jesus ameaçou os culpados com o fogo eterno, ameaçou-os também de serem jogados na Geena; ora, o que era a Geena? Um lugar nos arredores de Jerusalém, um vale onde se jogavam as imundícies da cidade. Seria preciso então tomar também isso ao pé da letra? Era uma dessas figuras enérgicas com o auxílio das quais ele impressionava as massas. Ocorre o mesmo com o fogo eterno. Se seu pensamento não fosse esse, estaria em contradição consigo mesmo exaltando a clemência e a misericórdia de Deus, pois a clemência e a inexorabilidade são contrários que se anulam. Seria enganar-se estranhamente sobre o sentido das palavras de Jesus ver nelas a sanção do dogma das penas eternas, enquanto todo seu ensinamento proclama a brandura do Criador.
Na Oração dominical, ele nos ensina a dizer: “Senhor, perdoai as nossas ofensas, como nós perdoamos aqueles que nos ofenderam.” Se o culpado não tivesse nenhum perdão a esperar, seria inútil pedi-lo. Mas esse perdão é sem condição? É uma graça, uma remissão pura e simples da pena incorrida? Não; a medida desse perdão está subordinada à maneira pela qual tivermos perdoado; ou seja, se não perdoarmos, não seremos perdoados. Deus, fazendo do esquecimento das ofensas uma condição absoluta, não podia exigir que o homem fraco fizesse o que ele, onipotente, não faria. A Oração dominical é um protesto diário contra a eterna vingança de Deus.
7. – Para homens que tinham apenas uma noção confusa da espiritualidade da alma, a ideia do fogo material não tinha nada de chocante, tanto menos que ela estava na crença vulgar tirada da crença no inferno dos pagãos, difundida quase universalmente. A eternidade da pena também não tinha nada que repugnasse a pessoas submetidas há séculos à legislação do terrível Jeová. No pensamento de Jesus, o fogo eterno podia então ser apenas uma figura; pouco lhe importava que essa figura fosse tomada ao pé da letra, se devia servir de freio; ele sabia bem que o tempo e o progresso deviam encarregar-se de fazer compreender seu sentido alegórico, sobretudo quando, segundo sua predição, o Espírito de Verdade viria esclarecer os homens sobre todas as coisas.
O caráter essencial das penas irrevogáveis é a ineficácia do arrependimento; ora, Jesus nunca disse que o arrependimento não encontraria graça diante de Deus. Em todas as ocasiões, ao contrário, ele mostra Deus clemente, misericordioso, pronto a receber o filho pródigo que voltou ao lar paterno. Não o mostra inflexível a não ser para o pecador endurecido; mas, se tem o castigo em uma mão, na outra tem sempre o perdão pronto a se estender sobre o culpado tão logo este volte sinceramente para ele. Esse não é certamente o quadro de um Deus sem compaixão. Também se deve observar que Jesus nunca pronunciou contra ninguém, nem mesmo contra os maiores culpados, uma condenação irremissível.
8. – Todas as religiões primitivas, de acordo com o caráter dos povos, tiveram deuses guerreiros que combatiam à frente dos exércitos. O Jeová dos hebreus fornecia-lhes mil meios de exterminarem os inimigos; recompensava-os pela vitória ou punia-os pela derrota. Segundo a ideia que se fazia de Deus, acreditava-se reverenciá-lo ou apaziguá-lo com o sangue dos animais ou dos homens: daí os sacrifícios sangrentos que desempenharam papel tão importante em todas as religiões antigas. Os judeus haviam abolido os sacrifícios humanos; os cristãos, apesar dos ensinamentos do Cristo, durante muito tempo acreditaram reverenciar o Criador entregando por milhares às chamas e às torturas aqueles que denominavam hereges; eram, sob outra forma, verdadeiros sacrifícios humanos, visto que eles o faziam para a maior glória de Deus, e com acompanhamento de cerimônias religiosas. Hoje mesmo, invocam o Deus dos exércitos antes do combate e glorificam-no depois da vitória, e isso frequentemente pelas causas mais injustas e mais anticristãs.
9. – Como o homem é lento para se desfazer de seus preconceitos, de seus hábitos, de suas ideias primeiras! Quarenta séculos nos separam de Moisés, e nossa geração cristã ainda vê traços dos antigos usos bárbaros consagrados, ou pelo menos aprovados pela religião atual! Foi preciso o poder da opinião dos não ortodoxos, daqueles que são vistos como hereges, para pôr
fim às fogueiras, e fazer compreender a verdadeira grandeza de Deus. Mas, no lugar das fogueiras, as perseguições materiais e morais ainda vigoram plenamente, tão enraizada está no homem a ideia de um Deus cruel. Alimentado por sentimentos que lhe são inculcados desde a infância, pode o homem se espantar de que o Deus que lhe apresentam como glorificado por atos bárbaros condene a torturas eternas, e veja sem compaixão os sofrimentos dos condenados?
Sim, foram filósofos, ímpios, segundo alguns, que ficaram escandalizados de ver o nome de Deus profanado por atos indignos dele; foram eles que o mostraram aos homens em toda a sua grandeza, despojando-o das paixões e das fraquezas humanas que uma crença não esclarecida lhe emprestava. A religião ganhou em dignidade o que perdeu em prestígio externo; pois se há menos homens apegados à forma, há mais homens mais sinceramente religiosos de coração e sentimentos.
Mas, ao lado desses, quantos há que, detendo-se na superfície, foram conduzidos à negação de toda providência! Por não se ter sabido pôr convenientemente as crenças religiosas em harmonia com o progresso da razão humana, fez-se nascer em alguns o deísmo, em outros a incredulidade absoluta, em outros o panteísmo, ou seja, o homem fez-se ele mesmo deus, na falta de ver um deus suficientemente perfeito.
Argumentos a favor das penas eternas
10. – Voltemos ao dogma da eternidade das penas. O principal argumento que se invoca em seu favor é este:
“Admite-se, entre os homens, que a gravidade da ofensa é proporcional à qualidade do ofendido. A que é cometida contra um soberano, sendo considerada como mais grave do que aquela que atinge um simples particular, é punida mais severamente. Ora, Deus é mais do que um soberano; visto que ele é infinito, a ofensa a ele é infinita, e deve ter um castigo infinito, ou seja, eterno.”
Refutação. – Toda refutação é um raciocínio que deve ter seu ponto de partida, uma base sobre a qual ele se apoia, premissas, numa palavra. Tiramos essas premissas dos próprios atributos de Deus:
Deus é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições.
É impossível conceber Deus a não ser com o infinito das perfeições; sem o quê ele não seria Deus, pois se poderia conceber um ser que possuísse o que lhe faltasse. Para que ele esteja acima de todos os seres, é preciso que nenhum possa sobrepujá-lo nem igualá-lo no que quer que seja. Portanto, é preciso que ele seja infinito em tudo.
Os atributos de Deus, sendo infinitos, não são susceptíveis nem de aumento nem de diminuição; sem isso, não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se se retirasse a menor parcela de um único de seus atributos, não se teria mais Deus, visto que poderia existir um ser mais perfeito.
O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da existência de uma qualidade contrária que a diminuiria ou a anularia. Um ser infinitamente bom não pode ter a menor parcela de maldade, nem o ser infinitamente mau ter a menor parcela de bondade; assim como um objeto não poderia ser de um preto absoluto com a mais ligeira nuance de branco, nem de um branco absoluto com a menor mancha de preto.
Estabelecido este ponto de partida, ao argumento acima opõem-se os argumentos seguintes:
11. – Só um ser infinito pode fazer algo infinito. O homem, sendo limitado em suas virtudes, em seus conhecimentos, em seu poder, em suas aptidões, em sua existência terrestre, pode produzir apenas coisas limitadas.
Se o homem pudesse ser infinito no mal que faz, sê-lo-ia igualmente no bem, e então seria igual a Deus. Mas, se o homem fosse infinito no bem que faz, não faria nenhum mal, pois o bem absoluto é a exclusão de todo mal.
Admitindo que uma ofensa temporária à Divindade possa ser infinita, Deus, vingando-se por um castigo infinito, seria infinitamente vingativo; se ele é infinitamente vingativo, não pode ser infinitamente bom e misericordioso, pois um desses atributos é a negação do outro. Se ele não é infinitamente bom, não é perfeito, e se não é perfeito, não é Deus.
Se Deus é inexorável para com o culpado arrependido, não é misericordioso; se não é misericordioso, não é infinitamente bom.
Por que Deus faria para o homem uma lei do perdão, se não devesse ele mesmo perdoar? Daí resultaria que o homem que perdoa a seus inimigos, e lhes faz o bem em troca do mal, seria melhor do que Deus que permanece surdo ao arrependimento daquele que o ofendeu, e que lhe recusa, pela eternidade, a mais leve atenuação!
Deus, que está em toda a parte e vê tudo, deve ver as torturas dos condenados às penas eternas. Se ele é insensível a seus gemidos durante a eternidade, é eternamente sem compaixão; se é sem compaixão, não é infinitamente bom.
12. – A isso, responde-se que o pecador que se arrepende antes de morrer sente a misericórdia de Deus, e que então o maior culpado pode cair em graça.
Isto não é posto em dúvida, e concebe-se que Deus perdoe apenas ao arrependido, e seja inflexível para com os endurecidos; mas, se ele é cheio de misericórdia para com a alma que se arrepende antes de ter deixado o corpo, por que deixa de sê-lo para com aquela que se arrepende depois da morte? Por que o arrependimento não teria eficácia a não ser durante a vida, que é apenas um instante, e não a teria mais durante a eternidade, que não tem fim? Se a bondade e a misericórdia de Deus são circunscritas a um determinado tempo, não são infinitas, e Deus não é infinitamente bom.
13. – Deus é soberanamente justo. A soberana justiça não é a justiça mais inexorável, nem aquela que deixa toda falta impune; é aquela que tem em conta rigorosamente o bem e o mal, que recompensa um e pune o outro na proporção mais equitativa, e nunca se engana.
Se, por uma falta temporária, que sempre é o resultado da natureza imperfeita do homem, e com frequência do meio em que ele se encontra, a alma pode ser punida eternamente, sem esperança de atenuação nem de perdão, não há nenhuma proporção entre a falta e a punição: portanto, não há justiça.
Se o culpado volta para Deus, arrepende-se e pede para reparar o mal que fez, é um retorno ao bem, aos bons sentimentos. Se o castigo é irrevogável, esse retorno ao bem é sem fruto; visto que não tem em conta o bem, não é justiça. Entre os homens, o condenado que se emenda vê sua pena comutada, por vezes até perdoada; logo, haveria na justiça humana mais equidade do que na justiça divina!
Se a condenação é irrevogável, o arrependimento é inútil; o culpado, não tendo nada a esperar de seu retorno ao bem, persiste no mal; de modo que não só Deus o condena a sofrer perpetuamente, mas ainda a permanecer no mal pela eternidade. Isso não seria justiça nem bondade.
14. – Sendo infinito em todas as coisas, Deus deve conhecer tudo, o passado e o futuro; ele deve saber, no momento da criação de uma alma, se ela falhará tão gravemente para ser condenada eternamente. Se não o sabe, seu saber não é infinito, e então não é Deus. Se o sabe, cria voluntariamente um ser destinado, desde a formação, a torturas sem fim, e então ele não é bom.
Se Deus, tocado pelo arrependimento de um condenado, pode estender sobre ele sua misericórdia e retirá-lo do inferno, não há mais penas eternas, e o julgamento pronunciado pelos homens é revogado.
15. – A doutrina das penas eternas absolutas conduz portanto forçosamente à negação ou à diminuição de alguns atributos de Deus; ela é, por conseguinte, inconciliável com a perfeição infinita; de onde se chega a esta conclusão: Se Deus é perfeito, a condenação eterna não existe; se ela existe, Deus não é perfeito.
16. – Invoca-se ainda a favor do dogma da eternidade das penas o argumento seguinte:
“A recompensa concedida aos bons, sendo eterna, deve ter como contrapartida uma punição eterna. É justo proporcionar a punição à recompensa.”
Refutação. – Deus cria a alma visando torná-la feliz ou desgraçada! Evidentemente, a felicidade da criatura deve ser a finalidade de sua criação, de outro modo Deus não seria bom. Ela atinge a felicidade por seu próprio mérito; adquirido o mérito, ela não pode perder o seu fruto, de outro modo degeneraria; a eternidade da felicidade é então a consequência de sua imortalidade.
Mas, antes de chegar à perfeição, ela tem lutas a sustentar, combates a travar com as paixões más. Não a tendo Deus criado perfeita, mas susceptível de se tornar perfeita, a fim de que ela tenha o mérito de suas obras, ela pode falhar. Suas quedas são as consequências de sua fraqueza natural. Se, por uma queda, ela devesse ser punida eternamente, poder-se-ia perguntar por que Deus não a criou mais forte. A punição que ela sofre é um aviso de que agiu mal, e que deve ter por resultado conduzi-la de volta ao bom caminho. Se a pena fosse irremissível, seu desejo de fazer melhor seria supérfluo; desde logo a finalidade providencial da criação não poderia ser alcançada, pois haveria seres predestinados à felicidade e outros à desgraça. Se uma alma culpada se arrepende, pode tornar-se boa; podendo tornar-se boa, ela pode aspirar à felicidade; Deus seria justo recusando-lhe os meios para isso?
Sendo o bem a meta final da criação, a felicidade, que é seu prêmio, deve ser eterna; o castigo, que é um meio de lá chegar, deve ser temporário. A mais vulgar noção de justiça, mesmo entre os homens, diz que não se pode castigar perpetuamente aquele que tem o desejo e a vontade de fazer o bem.
17. – O último argumento a favor da eternidade das penas é este: “O temor de um castigo eterno é um freio; se for retirado, o homem, sem temer mais nada, entregar-se-á a todos os excessos.”
Refutação. – Esse raciocínio seria correto, se o fato das penas não serem eternas acarretasse a supressão de toda sanção penal. O estado bem aventurado ou desgraçado na vida futura é uma consequência rigorosa da justiça de Deus, pois uma identidade de situação entre o homem bom e o perverso seria a negação dessa justiça. Mas, embora não sendo eterno, o castigo não é menos penoso; quanto mais nele se crê mais ele é temido, e quanto mais racional ele é mais se crê nele. Uma penalidade na qual não se crê não é mais um freio, e a eternidade das penas é uma delas.
A crença nas penas eternas, como dissemos, teve sua utilidade e sua razão de ser numa certa época; hoje em dia, não só ela não toca mais, como faz incrédulos. Antes de colocá-la como uma necessidade, seria preciso demonstrar sua realidade. Seria preciso, acima de tudo, que se visse sua eficácia naqueles que a preconizam e se esforçam para demonstrá-la. Infelizmente, entre esses, demasiados provam por seus atos que não a temem de modo algum. Se ela é impotente para reprimir o mal naqueles que dizem crer nela, que domínio pode ter sobre aqueles que não acreditam nela?
Impossibilidade material das penas eternas
18. – Até aqui, o dogma da eternidade das penas foi combatido unicamente pelo raciocínio; vamos mostrá-lo em contradição com os fatos positivos que temos sob os olhos, e provar sua impossibilidade.
Segundo este dogma, o destino da alma é fixado irremediavelmente depois da morte. Portanto, é um ponto de parada definitivo oposto ao progresso. Ora, a alma progride, sim ou não? Toda a questão reside nisso. Se ela progride, a eternidade das penas é impossível.
Será que se pode duvidar desse progresso, quando se vê a imensa variedade de aptidões morais e intelectuais que existem na terra, desde o selvagem até o homem civilizado? Quando se vê a diferença que um mesmo povo apresenta de um século para outro? Se se admitir que não são mais as mesmas almas, é preciso admitir então que Deus cria almas em todos os graus de avanço, segundo os tempos e os lugares; que ele favorece umas, ao passo que destina as outras a uma inferioridade perpétua: o que é incompatível com a justiça, que deve ser a mesma para todas as criaturas.
19. – É incontestável que a alma, atrasada intelectual e moralmente, como a dos povos bárbaros, não pode ter os mesmos elementos de bem aventurança, as mesmas aptidões para gozar dos esplendores do infinito, do que aquela cujas faculdades são todas amplamente desenvolvidas. Portanto, se as almas não progridem, não podem, nas condições mais favoráveis, gozar perpetuamente senão de uma bem-aventurança por assim dizer negativa. Logo, chega-se forçosamente, para estar de acordo com a rigorosa justiça, a esta consequência de que as almas mais avançadas são as mesmas que as que estavam atrasadas e que progrediram. Mas aqui tocamos na grande questão da pluralidade das existências, como único meio racional de resolver a dificuldade. Porém, faremos abstração dela, e consideraremos a alma numa única existência.
20. – Eis então, como se veem tantos outros, um jovem de vinte anos, ignorante, de instintos viciosos, negando Deus e sua alma, entregando-se à dissipação moral e cometendo toda sorte de más ações. No entanto, ele está num meio favorável; trabalha, instruí-se, pouco a pouco corrige-se e finalmente torna-se piedoso. Não é um exemplo palpável do progresso da alma durante a vida, e não se veem todos os dias casos semelhantes? Este homem morre santamente numa idade avançada, e naturalmente sua salvação está assegurada. Mas qual teria sido seu destino, se um acidente o tivesse feito morrer quarenta ou cinquenta anos mais cedo? Preenchia todas as condições para ser condenado; ora, uma vez condenado, todo progresso parava. Eis então um homem salvo porque viveu muito tempo, e que, segundo a doutrina das penas eternas, estaria perdido para sempre se tivesse vivido menos, o que podia resultar de um acidente fortuito. Uma vez que sua alma pôde progredir num tempo dado, por que não teria ela progredido no mesmo tempo após a morte, se uma causa independente de sua vontade o tivesse impedido de fazê-lo durante a vida? Por que Deus lhe teria recusado os meios para tanto? O arrependimento, ainda que tardio, não teria deixado de vir a seu tempo; mas se, desde o instante da morte, uma condenação irremissível o tivesse atingido, seu arrependimento teria sido infrutífero por toda a eternidade, e sua aptidão para progredir destruída para sempre.
21. – O dogma da eternidade absoluta das penas é, portanto, inconciliável com o progresso da alma, visto que lhe oporia um obstáculo invencível. Esses dois princípios se anulam forçosamente um ao outro; se um existe, o outro não pode existir. Qual dos dois existe? A lei do progresso é patente: não é uma teoria, é um fato constatado pela experiência; é uma lei natural, lei divina, imprescritível; logo, visto que ela existe, e que não se pode conciliar com a outra, é que a outra não existe. Se o dogma da eternidade das penas fosse uma verdade, Santo Agostinho, São Paulo e muitos outros jamais teriam visto o céu se tivessem morrido antes do progresso que os levou à conversão.
A esta última asserção, responde-se que a conversão desses santos personagens não é um resultado do progresso da alma, mas da graça que lhes foi concedida e pela qual foram tocados.
Mas aqui trata-se de um jogo de palavras. Se fizeram o mal, e mais tarde o bem, é porque se tornaram melhores; logo, progrediram. Deus lhes teria então, por um favor especial, concedido a graça de se corrigirem? Por que a eles e não a outros? É sempre a doutrina dos privilégios, incompatível com a justiça de Deus e seu igual amor por todas as suas criaturas.
Segundo a doutrina espírita, de acordo com as próprias palavras do Evangelho, com a lógica e a mais rigorosa justiça, o homem é filho de suas obras, durante esta vida e após a morte; ele não deve nada ao favor: Deus recompensa-o pelos seus esforços, e pune-o pela negligência enquanto for negligente.
A doutrina das penas eternas está ultrapassada
22. – A crença na eternidade das penas materiais permaneceu como uma crença salutar até que os homens estivessem aptos a compreender o poder moral. Tal como as crianças que se contêm durante um tempo pela ameaça de certos seres quiméricos com a ajuda dos quais as assustam; mas chega um momento em que a razão da criança lhe mostra a verdade dos contos com que a embalavam, e em que seria absurdo pretender governá-la pelos mesmos meios. Se aqueles que a dirigem persistissem em afirmar-lhe que essas fábulas são verdades que é preciso tomar ao pé da letra, perderiam sua confiança.
O mesmo ocorre hoje com a humanidade; ela saiu da infância e não se deixa mais levar pela mão. O homem não é mais aquele instrumento passivo que se dobrava à força material, nem aquele ser crédulo que aceitava tudo de olhos fechados.
23. – A crença é um ato do entendimento, é por isso que não pode ser imposta. Se, durante certo período da humanidade, o dogma da eternidade das penas pôde ser inofensivo, até mesmo saudável, chega um momento em que se torna perigoso. Com efeito, desde o instante em que o impondes como verdade absoluta, quando a razão o repele, resulta daí necessariamente uma destas duas coisas: ou o homem que quer crer cria uma crença mais racional, e então se separa de vós; ou então não crê em mais nada. É evidente que, para quem quer que seja que estudou a questão com sangue frio, em nossos dias, o dogma da eternidade das penas fez mais materialistas e ateus do que todos os filósofos.
As ideias seguem um curso incessantemente progressivo; só se pode governar os homens seguindo esse curso; querer detê-lo ou fazê-lo recuar, ou simplesmente ficar para trás, enquanto ele avança, é perder-se. Seguir ou não seguir esse movimento é uma questão de vida ou morte, tanto para as religiões quanto para os governos. É um bem? É um mal? Seguramente, é um mal aos olhos daqueles que, vivendo no passado, veem esse passado lhes escapar; para aqueles que veem o futuro, é a lei do progresso que é uma lei de Deus, e, contra as leis de Deus, toda resistência é inútil; lutar contra sua vontade é querer destruir-se.
Por que então querer, a toda força, manter uma crença que cai em desuso, e que, em última análise, faz mais mal do que bem à religião? Infelizmente, é triste dizer, mas uma questão material domina aqui a questão religiosa. Esta crença foi amplamente explorada, com auxílio do pensamento de que com dinheiro se podia fazer abrir as portas do céu, e se preservar do inferno. As quantias que ela rendeu, e que ainda rende, são incalculáveis; é o imposto cobrado sobre o medo da eternidade. Sendo esse imposto facultativo, o produto é proporcional à crença; se a crença não existe mais, o produto torna-se nulo. A criança dá de bom grado seu bolo a quem lhe prometer expulsar o lobisomem; mas quando a criança não acredita mais no lobisomem, fica com o bolo.
24. – Dando a nova revelação ideias mais sãs da vida futura, e provando que se pode obter a salvação por suas próprias obras, ela deve encontrar uma oposição tanto mais viva quanto seca uma fonte mais importante de produtos. Assim é a cada vez que uma descoberta ou uma invenção vêm mudar os hábitos. Aqueles que vivem dos antigos procedimentos custosos defendem-nos e criticam os novos, mais econômicos. Acredita-se, por exemplo, que a imprensa, apesar dos serviços que devia prestar à humanidade, deve ter sido aclamada pela numerosa classe dos copistas? Claro que não; eles devem tê-la amaldiçoado. Foi assim com as máquinas, as estradas de ferro e cem outras coisas.
Aos olhos dos incrédulos, o dogma da eternidade das penas é uma questão fútil da qual se riem; aos olhos do filósofo, tem uma gravidade social pelos abusos a que dá ensejo; o homem verdadeiramente religioso vê a dignidade da religião interessada na destruição desses abusos e de sua causa.
Ezequiel contra a eternidade das penas e o pecado original
25. – Àqueles que pretendem encontrar na Bíblia a justificação da eternidade das penas, podem-se opor textos contrários que não deixam nenhuma ambiguidade. As palavras seguintes de Ezequiel são a negação mais explícita não só das penas irremissíveis, mas da responsabilidade que a falta do pai do gênero humano teria feito pesar sobre sua raça:
1. O Senhor me falou de novo e disse-me: – 2. De onde vem que vos servis entre vós desta parábola, e que a tornastes provérbio em Israel: Os pais, dizeis, comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos sentem a acidez? – 3. Juro por mim mesmo, disse o Senhor Deus, que essa parábola não passará mais entre vós a provérbio em Israel; – 4. Pois todas as almas são minhas; a alma do filho é minha como a alma do pai; a alma que pecou morrerá ela mesma.
5. Se um homem é justo, se ele age segundo a equidade e a justiça; – 7. Se não entristece nem oprime ninguém; se devolve a seu devedor a caução que ele lhe dera; se não toma nada do bem de outrem pela violência; se dá do seu pão àquele que tem fome; se cobre de vestes aqueles que estavam nus; – 8. Se não empresta a juros e não recebe mais do que deu; se desvia sua mão da iniquidade, e se profere um julgamento equitativo entre dois homens que pleiteiam juntos; – 9. Se ele anda pelo caminho de meus preceitos, e respeita minhas determinações para agir segundo a verdade: esse é justo, e viverá muito certamente, disse o Senhor Deus.
10. Se esse homem tiver um filho que seja um ladrão e que derrame sangue, ou que cometa alguma dessas faltas; – 13. Esse filho morrerá muito certamente, visto que fez todas essas ações detestáveis, e seu sangue estará em sua cabeça.
14. Se esse homem tiver um filho que, vendo todos os crimes que o pai cometera, seja presa de temor, e se abstenha de imitá-lo; – 17. Esse não morrerá por causa da iniquidade do pai, mas viverá muito certamente. – 18. O pai, que oprimira os outros com calúnias, e que cometera ações criminosas no meio de seu povo, morreu por causa de sua própria iniquidade.
19. Se disserdes: Por que o filho não carregou a iniquidade do pai? É porque o filho agiu segundo a equidade e a justiça; que ele manteve todos os meus preceitos, e praticou-os; é por isso que ele viverá muito certamente.
20. A alma que pecou morrerá ela mesma: O filho não carregará a iniquidade do pai, e o pai não carregará a iniquidade do filho; a justiça do justo estará sobre ele, e a impiedade do ímpio estará sobre ele.
21. Se o ímpio fizer penitência de todos os pecados que cometera; se mantiver todos os meus preceitos, e se agir segundo a equidade e a justiça, ele viverá certamente e não morrerá. – 22. Não me lembrarei mais de todas as iniquidades que ele cometera; ele viverá nas obras de justiça que tiver feito.
23. Quero eu a morte do ímpio? disse o Senhor Deus; e não quero antes que ele se converta, e que se retire de seu mau caminho, e que viva? (Ezequiel, cap. XXVIII.)
Dizei-lhes estas palavras: Juro por mim mesmo, disse o Senhor Deus, que não quero a morte do ímpio, mas quero que o ímpio se converta, que deixe seu mau caminho e que viva. (Ezequiel, cap. XXXIII, v. 11.)
A carne é fraca - Estudo fisiológico e moral
Há tendências viciosas que são evidentemente inerentes ao Espírito, porque se devem mais ao moral do que ao físico; outras parecem mais consequência do organismo, e, por esse motivo, acredita-se que se é menos responsável: tais são as predisposições à cólera, à moleza, à sensualidade, etc.
É perfeitamente reconhecido hoje em dia, pelos filósofos espiritualistas, que os órgãos cerebrais, correspondendo às diversas aptidões, devem seu desenvolvimento à atividade do Espírito; que esse desenvolvimento é assim um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tem a bossa da música, mas ele só tem a bossa da música porque seu Espírito é músico.
Se a atividade do Espírito reage sobre o cérebro, ela deve reagir igualmente sobre as outras partes do organismo. O Espírito é assim o artesão de seu próprio corpo, que ele modela, por assim dizer, a fim de adequá-lo a suas necessidades e à manifestação de suas tendências. Dado isso, a perfeição do corpo das raças avançadas não seria o produto de criações distintas, mas o resultado do trabalho do Espírito, que aperfeiçoa sua ferramenta à medida que suas faculdades aumentam.
Por uma consequência natural desse princípio, as disposições morais do Espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe mais ou menos atividade, provocar uma secreção mais ou menos abundante de bile ou outros fluidos. É assim, por exemplo, que o guloso sente vir saliva à boca à vista de um prato apetitoso. Não é o prato que pode excitar o órgão do paladar, visto que não há contato; é portanto o Espírito, cuja sensualidade está desperta, que age, pelo pensamento, sobre esse órgão, ao passo que, sobre um outro, a vista desse prato não produz nenhum efeito. É ainda pela mesma razão que uma pessoa sensível derrama facilmente lágrimas; não é a abundância das lágrima que dá a sensibilidade ao Espírito, mas é a sensibilidade do Espírito que provoca a secreção abundante das lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo adequou-se a essa disposição normal do Espírito, como se adequou à do Espírito guloso.
Seguindo esta ordem de ideias, compreende-se que um Espírito irascível deve impelir ao temperamento bilioso; de onde decorre que um homem não é colérico porque é bilioso, mas que é bilioso porque é colérico. O mesmo ocorre com todas as outras disposições instintivas; um Espírito mole e indolente deixará seu organismo num estado de atonia em relação com seu caráter, ao passo que, se for ativo e enérgico, dará a seu sangue, a seus nervos qualidades completamente diferentes. A ação do Espírito sobre o físico é tão evidente, que se veem com frequência graves desordens orgânicas se produzir pelo efeito de violentas comoções morais. A expressão vulgar: A emoção modificou-lhe o sangue não é tão desprovida de sentido quanto se poderia crer; ora, o que pôde modificar o sangue, senão as disposições morais do Espírito?
Pode-se então admitir que o temperamento é, ao menos em parte, determinado pela natureza do Espírito, que é causa e não efeito. Dizemos em parte, porque há casos em que o físico influi evidentemente sobre o moral: é quando um estado mórbido ou anormal é determinado por uma causa externa, acidental, independente do Espírito, como a temperatura, o clima, os vícios hereditários de constituição, um mal estar passageiro, etc. O moral do Espírito pode então ser afetado em suas manifestações pelo estado patológico, sem que sua natureza intrínseca seja modificada.
Lançar a culpa de suas más ações à fraqueza da carne não é, portanto, senão um subterfúgio para escapar da responsabilidade. A carne só é fraca porque o Espírito é fraco, o que inverte a questão, e deixa ao Espírito a responsabilidade por todos os seus atos. A carne, que não tem pensamento nem vontade, nunca prevalece sobre o Espírito, que é o ser pensante e desejante; é o Espírito que dá à carne as qualidades correspondentes a seus instintos, como um artista imprime à sua obra material o cunho de seu gênio. O Espírito, libertado dos instintos da bestialidade, modela um corpo que não é mais um tirano para suas aspirações à espiritualidade de seu ser; é então que o homem come para viver, porque viver é uma necessidade, mas não vive mais para comer.
A responsabilidade moral pelos atos da vida é, pois, total; mas a razão diz que as consequências dessa responsabilidade devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito; quanto mais esclarecido ele for, menos é desculpável, porque com a inteligência e o senso moral nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto.
Esta lei explica o insucesso da medicina em certos casos. Uma vez que o temperamento é um efeito e não uma causa, os esforços tentados para modificá-lo são necessariamente paralisados pelas disposições morais do Espírito, que opõe uma resistência inconsciente e neutraliza a ação terapêutica. É, portanto, sobre a primeira causa que é preciso agir. Dai, se possível, coragem ao covarde, e vereis cessar os efeitos fisiológicos do medo.
Isto prova uma vez mais a necessidade, para a arte de curar, de levar em conta a ação do elemento espiritual sobre o organismo. (Revista espírita, março de 1869, p. 65.)
Princípio da doutrina espírita sobre as penas futuras
A doutrina espírita, no que toca às penas futuras, não se baseia mais numa teoria preconcebida do que em suas outras partes; não é um sistema substituindo outro sistema: em todas as coisas ela se apoia sobre observações, e é o que constitui sua autoridade. Ninguém, pois, imaginou que as almas, após a morte, deviam encontrar-se em tal ou qual situação; são os próprios seres que deixaram a terra que vêm hoje iniciar-nos nos mistérios da vida futura, descrever sua posição feliz ou desgraçada, suas impressões e sua transformação com a morte do corpo; numa palavra, completar sobre este ponto o ensinamento do Cristo.
Não se trata aqui do relato de um único Espírito, que poderia ver as coisas somente do seu ponto de vista, sob um único aspecto, ou estar ainda dominado pelos preconceitos terrestres, nem de uma revelação feita a um único indivíduo, que poderia se deixar enganar pelas aparências, nem de uma visão extática que se presta a ilusões, e é com frequência apenas o reflexo de uma imaginação exaltada; * mas trata-se de inúmeros exemplos fornecidos por todas as categorias de Espíritos, de alto a baixo da escala, com a ajuda de inúmeros intermediários disseminados em todos os pontos do globo, de tal modo que a revelação não é privilégio de ninguém, cada qual é capaz de ver e observar, e ninguém é obrigado a crer apoiando-se na fé de outrem.
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* Ver acima, cap. VI, no 7, e Livro dos Espíritos, nos 443, 444.
Código penal da vida futura
O Espiritismo não vem, portanto, mediante sua autoridade privada, formular um código de fantasia; sua lei, no que toca ao futuro da alma, deduzida de observações feitas sobre o fato, pode resumir-se nos seguintes pontos:
1º A alma ou o Espírito sofre, na vida espiritual, as consequências de todas as imperfeições de que não se despojou durante a vida corporal. Seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao grau de sua purificação ou de suas imperfeições.
2º A felicidade perfeita está ligada à perfeição, ou seja, à purificação completa do Espírito. Toda imperfeição é ao mesmo tempo uma causa de sofrimento e de privação de gozo, assim como toda qualidade adquirida é uma causa de gozo e de atenuação dos sofrimentos.
3º Não há uma única imperfeição da alma que não traga consigo suas consequências lastimáveis, inevitáveis, e nem uma única boa qualidade que não seja a fonte de um gozo. A soma das penas é assim proporcionada à soma das imperfeições, como a dos gozos está na razão da soma das qualidades.
A alma que tem dez imperfeições, por exemplo, sofre mais do que a que tem só três ou quatro; quando dessas dez imperfeições, não lhe restar senão um quarto ou a metade, ela sofrerá menos, e quando não lhe restar nenhuma, não sofrerá mais e será perfeitamente feliz. Tal como, na terra, aquele que tem várias doenças sofre mais do que o que só tem uma, ou nenhuma. Pela mesma razão, a alma que possui dez qualidades tem mais gozos do que a que tem menos qualidades.
4º Em virtude da lei do progresso, toda alma tendo a possibilidade de adquirir o bem que lhe falta e se desfazer do que tem de mau, segundo seus esforços e sua vontade, resulta daí que o futuro não está fechado a nenhuma criatura. Deus não repudia nenhum de seus filhos; recebe-os no seu seio à medida que atingem a perfeição, deixando assim a cada um o mérito de suas obras.
5º Estando o sofrimento vinculado à imperfeição, como o gozo à perfeição, a alma carrega em si mesma seu próprio castigo em toda parte onde se encontra: não é preciso para isso de um lugar circunscrito. O inferno está portanto em todo lugar onde há almas sofredoras, como o céu está em toda parte onde há almas bem aventuradas.
6º O bem e o mal que se faz são o produto das boas e das más qualidades que se possui. Não fazer o bem que se é capaz de fazer é então o resultado de uma imperfeição. Se toda imperfeição é uma fonte de sofrimento, o Espírito deve sofrer não só por todo o mal que fez, mas por todo o bem que poderia ter feito e não fez durante sua vida terrestre.
7º O Espírito sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que sua atenção estando incessantemente concentrada nas consequências desse mal, ele compreenda melhor seus inconvenientes e seja motivado a corrigir-se.
8º Sendo a justiça de Deus infinita, é mantida uma conta rigorosa do bem e do mal; se não há uma única má ação, um único mau pensamento que não tenha suas consequências fatais, não há uma única boa ação, um único bom movimento da alma, o mais leve mérito, numa palavra, que seja perdido, mesmo nos mais perversos, porque é um começo de progresso.
9º Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.
10º O Espírito sofre a pena de suas imperfeições, seja no mundo espiritual, seja no mundo corporal. Todas as misérias, todas as vicissitudes que suportamos na vida corporal são decorrentes de nossas imperfeições, expiações de faltas cometidas, seja na existência presente, seja nas precedentes.
Pela natureza dos sofrimentos e das vicissitudes suportadas na vida corpórea, pode-se julgar da natureza das faltas cometidas numa existência precedente, e das imperfeições que lhe são a causa.
11º A expiação varia segundo a natureza e a gravidade da falta; a mesma falta pode assim dar lugar a expiações diferentes, segundo as circunstâncias atenuantes ou agravantes nas quais ela foi cometida.
12º Não há, em relação à natureza e à duração do castigo, nenhuma regra absoluta e uniforme; a única lei geral é que toda falta recebe sua punição e toda boa ação sua recompensa, segundo seu valor.
13º A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do Espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr um fim aos sofrimentos, é um aperfeiçoamento sério, efetivo, e um retorno sincero ao bem.
O Espírito é assim sempre o árbitro de seu próprio destino; pode prolongar seus sofrimentos pela persistência no mal, aliviá-los ou abreviá-los por seus esforços para fazer o bem.
Uma condenação por um tempo determinado qualquer teria o duplo inconveniente: o de continuar a atingir o Espírito que se tivesse melhorado, ou de cessar quando ele ainda estivesse no mal. Deus, que é justo, pune o mal enquanto ele existe; cessa de punir quando o mal não existe mais *; ou, sendo o mal moral, por si mesmo, uma causa de sofrimento, o sofrimento dura enquanto o mal subsistir; sua intensidade diminui à medida que o mal perde força.
14º Estando a duração do castigo subordinada à melhoria, daí resulta que o Espírito culpado que jamais se melhorasse sofreria sempre, e, para ele, a pena seria eterna.
15º Uma condição inerente à inferioridade dos Espíritos é não ver o termo de sua situação e crer que sofrerão sempre. É para eles um castigo que lhes parece dever ser eterno. **
16º O arrependimento é o primeiro passo para o aperfeiçoamento; mas sozinho não basta, é preciso ainda a expiação e a reparação.
Arrependimento, expiação e reparação são as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas consequências.
O arrependimento suaviza as dores da expiação, dando esperança e preparando as vias da reabilitação; mas somente a reparação pode anular o efeito, destruindo a causa; o perdão seria uma graça e não uma anulação.
17º O arrependimento pode ocorrer em todo lugar e a qualquer tempo; se for tardio, o culpado sofre por mais longo tempo.
A expiação consiste nos sofrimentos físicos e morais, que são a consequência da falta cometida, seja desde a vida presente, seja, após a morte, na vida espiritual, seja numa nova existência corpórea, até que os traços da falta sejam apagados.
A reparação consiste em fazer bem àquele a quem se fez mal. Quem não repara suas faltas nesta vida, por impotência ou má vontade, encontrar-se-á, numa existência ulterior, em contato com as mesmas pessoas que tiveram queixas dele, e em condições escolhidas por ele mesmo, de maneira a poder provar-lhes sua dedicação, e fazer-lhes tanto bem quanto lhes fez mal.
Nem todas as faltas acarretam um prejuízo direto e efetivo; neste caso, a reparação se realiza: fazendo o que se devia fazer e que não se fez, cumprindo os deveres que foram negligenciados ou ignorados, as missões nas quais se falhou; praticando o bem contrário ao que se fez de mal: isto é, sendo humilde se foi orgulhoso, terno se foi duro, caridoso se foi egoísta, benevolente se foi malevolente, laborioso se foi preguiçoso, útil se foi inútil, temperante se foi dissoluto, um bom exemplo se deu mau exemplo, etc. É assim que o Espírito progride tirando proveito de seu passado. ***
18º Os Espíritos imperfeitos são excluídos dos mundos felizes, cuja harmonia perturbariam; permanecem nos mundos inferiores, onde expiam suas faltas pelas tribulações da vida, e se purificam de suas imperfeições, até que mereçam encarnar-se nos mundos mais avançados moral e fisicamente.
Se pudéssemos conceber um lugar de castigo circunscrito, é nos mundos de expiação, pois é em volta desses mundos que pululam os Espíritos imperfeitos desencarnados, esperando uma nova existência que, permitindo-lhes reparar o mal que fizeram, ajudará em seu adiantamento.
19º Tendo sempre o Espírito seu livre-arbítrio, seu melhoramento é por vezes lento, e sua obstinação no mal muito tenaz. Ele pode persistir anos e séculos; mas chega sempre um momento em que sua teimosia em enfrentar a justiça de Deus se dobra diante do sofrimento, e em que, apesar de sua soberba, reconhece o poder superior que o domina. Assim que se manifestam nele as primeiras luzes do arrependimento, Deus lhe faz entrever a esperança.
Nenhum Espírito está na condição de jamais aperfeiçoar-se; de outro modo, estaria destinado a uma eterna inferioridade, e escaparia à lei do progresso que rege providencialmente todas as criaturas.
20º Sejam quais forem a inferioridade e a perversidade dos Espíritos, Deus nunca os abandona. Todos têm seu anjo guardião que vela por eles, espiaos movimentos de sua alma e esforça-se para suscitar neles bons pensamentos, o desejo de progredir e de reparar, numa nova existência, o mal que fizeram. Contudo o guia protetor age quase sempre de maneira oculta, sem exercer nenhuma pressão. O Espírito deve aperfeiçoar-se pelo fato de sua própria vontade, e não em decorrência de qualquer coerção. Ele age bem ou mal em virtude de seu livre-arbítrio, mas sem ser fatalmente impelido num sentido ou noutro. Se age mal, sofre as consequências do mal enquanto persistir no mau caminho; desde que dá um passo para o bem, sente imediatamente os efeitos.
Observação. – Seria um erro crer que em virtude da lei do progresso, a certeza de chegar cedo ou tarde à perfeição e à bem aventurança pode ser um encorajamento a perseverar no mal, sob a condição de se arrepender mais tarde: primeiro, porque o Espírito inferior não vê o termo de sua situação; em segundo lugar, porque o Espírito, sendo o artífice de sua própria desgraça, acaba por compreender que depende dele fazê-la cessar, e que quanto mais tempo persistir no mal, por mais tempo será desgraçado; que seu sofrimento durará para sempre se ele mesmo não lhe puser fim. Seria portanto de sua parte um cálculo errado, e ele seria o primeiro enganado. Se, ao contrário, segundo o dogma das penas irremissíveis, toda esperança lhe está vedada para sempre, ele não tem nenhum interesse em voltar ao bem, que não lhe traz proveito.
Diante desta lei cai igualmente a objeção tirada da presciência divina. Deus, criando uma alma, sabe efetivamente se, em virtude de seu livre-arbítrio, ela tomará o bom ou o mau caminho; sabe que ela será punida se agir mal; mas sabe também que esse castigo temporário é um meio de lhe fazer compreender seu erro e de fazê-la entrar no bom caminho, ao qual ela chegará cedo ou arde. Segundo a doutrina das penas eternas, Ele sabe que ela falhará, e está de antemão condenada a torturas sem fim.
21º Cada um é responsável apenas por suas faltas pessoais; ninguém carrega a pena das faltas de outrem, a menos que tenha dado lugar a tal, seja provocando-as por seu exemplo, seja não as impedindo quando tinha esse poder. É assim, por exemplo, que o suicida é sempre punido; mas aquele que, por sua dureza, impele um indivíduo ao desespero e daí a destruir-se, sofre uma pena ainda maior.
22º Embora a diversidade das punições seja infinita, há aquelas que são inerentes à inferioridade dos Espíritos, e cujas consequências, exceto as nuances, são quase idênticas.
A punição mais imediata, sobretudo para os que se apegaram à vida material negligenciando o progresso espiritual, consiste na lentidão da separação da alma e do corpo, nas angústias que acompanham a morte e o despertar na outra vida, na duração da perturbação que pode durar meses e anos. Para aqueles, ao contrário, cuja consciência é pura, que, durante a vida se identificaram com a vida espiritual e se desprenderam das coisas materiais, a separação é rápida, sem abalos, o despertar pacífico e a perturbação quase inexistente.
23º Um fenômeno, muito frequente nos Espíritos de alguma inferioridade moral, consiste em acreditar que ainda estão vivos, e essa ilusão pode prolongar-se durante anos, ao longo dos quais experimentam todas as necessidades, todos os tormentos e todas as perplexidades da vida.
24º Para o criminoso, a visão incessante de suas vítimas e das circunstâncias do crime é um cruel suplício.
25º Certos Espíritos estão mergulhados em espessas trevas; outros estão num isolamento absoluto no meio do espaço, atormentados pela ignorância de sua posição e de seu destino. Os mais culpados sofrem torturas tanto mais pungentes quanto não lhes veem o fim. Muitos são privados da visão dos seres que lhes são caros. Todos, geralmente, suportam com intensidade relativa os males, as dores e as necessidades que fizeram suportar aos outros, até que o arrependimento e o desejo de reparação venham trazer um alívio, fazendo entrever a possibilidade de pôr, por si mesmo, um fim a essa situação.
26º É um suplício para o orgulhoso ver acima de si, na glória, rodeados e festejados, aqueles que ele desprezara na terra, ao passo que ele é relegado às últimas fileiras; para o hipócrita, ver-se penetrado pela luz que põe a nu seus mais secretos pensamentos, que todos podem ler: nenhum meio têm de se esconder e dissimular-se; para o sensual, ter todas as tentações, todos os desejos, sem poder satisfazê-los; para o avaro, ver seu ouro dilapidado e não poder retê-lo; para o egoísta, ser abandonado por todos e sofrer tudo o que outros sofreram por sua causa: terá sede, e ninguém lhe dará de beber; terá fome, e ninguém lhe dará de comer; nenhuma mão amiga vem apertar a sua, nenhuma voz compassiva o vem consolar; não pensou senão em si próprio durante a vida, ninguém pensa nele nem o lastima depois da morte.
27º O meio de evitar ou atenuar as consequências de seus defeitos na vida futura é desfazer-se deles o máximo possível na vida presente; é reparar o mal, para não ter de repará-lo mais tarde de maneira horrível. Quanto mais se demora a se desfazer dos defeitos, mais as consequências são penosas e mais a reparação que se deve realizar é rigorosa.
28º A situação do Espírito, desde sua entrada na vida espiritual, é a que ele preparou pela vida corporal. Mais tarde, outra encarnação lhe é dada para a expiação e a reparação por novas provas; mas ele as aproveita mais ou menos em virtude de seu livre-arbítrio; se não aproveita, é uma tarefa a recomeçar cada vez em condições mais penosas: de modo que aquele que sofre muito na terra pode dizer que tinha muito que expiar; aqueles que gozam de uma felicidade aparente, apesar de seus vícios e sua inutilidade, estejam certos de pagá-lo muito caro numa existência ulterior. É neste sentido que Jesus disse: “Bem aventurados os aflitos, pois eles serão consolados.” (Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V.)
29º A misericórdia de Deus é infinita, sem dúvida, mas não é cega. O culpado que ele perdoa não é exonerado, e enquanto não satisfez a justiça sofre as consequências de suas faltas. Por misericórdia infinita, é preciso entender que Deus não é inexorável, e que deixa sempre aberta a porta do retorno ao bem.
30º Sendo as penas temporárias e subordinadas ao arrependimento e à reparação, que dependem da livre vontade do homem, são ao mesmo tempo castigos e remédios que devem ajudar a curar as feridas do mal. Os Espíritos em punição são, portanto, não como condenados às galés por tempo, mas como doentes no hospital, que sofrem da doença que quase sempre é culpa deles, e dos meios curativos dolorosos de que ela necessita, mas que têm esperança de sarar, e que saram tanto mais depressa se seguirem mais exatamente as prescrições do médico que vela por eles com solicitude. Se prolongam seus sofrimentos por falta sua, o médico nada tem com isso.
31º Às penas que o Espírito suporta na vida espiritual vêm juntar-se as da vida corporal, que são a consequência das imperfeições do homem, de suas paixões, do mau emprego de suas faculdades, e a expiação de suas faltas presentes e passadas. É na vida corporal que o Espírito repara o mal das existências anteriores, que põe em prática as resoluções tomadas na vida espiritual. Assim se explicam essas misérias e essas vicissitudes que, ao primeiro olhar, parecem não ter razão de ser, e são absolutamente justas pois são a quitação do passado e servem ao nosso adiantamento. ****
32º Deus, diz-se, não provaria um amor maior por suas criaturas se as tivesse criado infalíveis e, por conseguinte, isentas das vicissitudes vinculadas à imperfeição?
Teria sido preciso, para isso, que criasse seres perfeitos, nada tendo de adquirir, nem em conhecimento, nem em moralidade. Sem dúvida nenhuma, ele podia; se não o fez, é que, na sua sabedoria, quis que o progresso fosse a lei geral.
Os homens são imperfeitos, e, como tal, sujeitos a vicissitudes mais ou menos penosas; é um fato que é preciso aceitar, visto que existe. Inferir daí que Deus não é bom nem justo seria uma revolta contra ele.
Haveria injustiça se ele tivesse criado seres privilegiados, uns mais favorecidos que outros, gozando sem trabalho da felicidade que outros só atingem com dificuldade, ou nunca podem atingir. Mas onde sua justiça brilha é na igualdade absoluta que preside à criação de todos os Espíritos; todos têm um mesmo ponto de partida; nenhum que seja, na formação, mais bem dotado que os outros; nenhum cuja marcha ascensional seja facilitada por exceção: os que chegaram ao objetivo passaram, como os outros, pela sucessão das provas e da inferioridade.
Admitido isto, o que há de mais justo do que a liberdade de ação deixada a cada um? A estrada da felicidade está aberta a todos; o objetivo é o mesmo para todos; as condições para atingi-lo são as mesmas para todos; a lei gravada em todas as consciências é ensinada a todos. Deus fez da felicidade o prêmio do trabalho, e não do favor, a fim de que cada um tivesse seu mérito; cada um é livre de trabalhar ou de não fazer nada para seu adiantamento; aquele que trabalha muito e depressa é recompensado por isso mais cedo; aquele que se desvia do caminho ou perde tempo retarda a chegada, e só pode acusar a si mesmo. O bem e o mal são voluntários e facultativos; o homem, sendo livre, não é fatalmente impelido nem para um, nem para outro.
33º Apesar da diversidade dos gêneros e dos graus de sofrimento dos Espíritos imperfeitos, o código penal da vida futura pode resumir-se nestes três princípios:
O sofrimento está vinculado à imperfeição.
Toda imperfeição, e toda falta que dela decorre, traz consigo seu próprio castigo, por suas consequências naturais e inevitáveis, como a doença é decorrente dos excessos, o tédio da ociosidade, sem que haja necessidade de uma condenação especial para cada falta e cada indivíduo.
Todo homem, podendo desfazer-se das imperfeições pelo efeito de sua vontade, pode poupar a si mesmo os males que delas decorrem, e assegurar sua felicidade futura.
Tal é a lei da justiça divina: a cada um segundo suas obras, no céu como na terra.
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* Ver acima, cap. VI, n0 25, citação de Ezequiel.
** Perpétuo é sinônimo de eterno. Diz-se: o limite das neves perpétuas; o gelo eterno dos polos; diz-se também o secretário perpétuo da Academia, o que não quer dizer que ele o será perpetuamente, mas somente por um tempo ilimitado. Eterno e perpétuo empregam-se portanto no sentido de indeterminado. Nesta acepção, pode-se dizer que as penas são eternas, se se compreender que não têm uma duração limitada; elas são eternas para o Espírito que não vê seu fim.
*** A necessidade da reparação é um princípio de rigorosa justiça que se pode considerar como a verdadeira lei de reabilitação moral dos Espíritos. É uma doutrina que nenhuma religião proclamou ainda.
Entretanto algumas pessoas a repelem, porque achariam mais cômodo poder apagar suas más ações com um simples arrependimento, que custa apenas palavras, e com a ajuda de algumas fórmulas; elas podem acreditar que estão quites: verão mais tarde se isso lhes basta. Poder-se-ia perguntar-lhes se esse princípio não é consagrado pela lei humana, e se a justiça de Deus pode ser inferior à dos homens? Se elas se achariam satisfeitas com um indivíduo que, tendo-as arruinado por abuso de confiança, se limitasse a dizer que lamenta infinitamente. Por que recuariam perante uma obrigação que todo homem de bem reconhece ser seu dever cumprir, na medida das suas forças?
Quando essa perspectiva da reparação for inculcada na crença das massas, será um freio muito mais poderoso do que a do inferno e das penas eternas, porque se refere à atualidade da vida, e o homem compreenderá a razão de ser das circunstâncias penosas em que se acha colocado.
**** Ver acima, cap. VI, O Purgatório, nos 3 e ss; e a seguir, cap. XX: Exemplos de expiações terrestres. – Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V: Bem aventurados os aflitos.
Os anjos segundo a Igreja
1.– Todas as religiões tiveram, sob diversos nomes, anjos, ou seja, seres superiores à humanidade, intermediários entre Deus e os homens. O materialismo, negando toda existência espiritual fora da vida orgânica, naturalmente classificou os anjos entre as ficções e as alegorias. A crença nos anjos faz parte essencial dos dogmas da Igreja; eis como ela os define. *
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* Tiramos este resumo da pastoral de Monsenhor Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para a Quaresma de 1864. Pode-se então considerá-lo, assim como o dos demônios, proveniente da mesma origem e citado no capítulo seguinte, como a última expressão do dogma da Igreja sobre este ponto.
2. – “Acreditamos firmemente, diz um concílio geral e ecumênico *, que não há senão um verdadeiro Deus, eterno, e infinito, o qual, no começo dos tempos, tirou juntas do nada ambas as criaturas, a espiritual e a corporal, a angélica e a mundana, e em seguida formou, como intermediária entre as duas, a natureza humana, composta de corpo e de espírito.
“Tal é, segundo a fé, o plano divino na obra da criação: plano majestoso e completo, como convinha à sabedoria eterna. Assim concebido, ele oferece aos nossos pensamentos o ser em todos os graus e em todas as condições. Na esfera mais elevada aparecem a existência e a vida puramente espirituais; em último lugar, a existência e a vida puramente materiais; e no intervalo que as separa, uma maravilhosa união das duas substâncias, uma vida comum ao mesmo tempo do espírito inteligente e do corpo organizado.
“Nossa alma é de uma natureza simples e indivisível; mas ela é limitada em suas faculdades. A ideia que temos da perfeição faz-nos compreender que pode haver outros seres simples como ela, e superiores por suas qualidades e seus privilégios. Ela é grande e nobre; mas está associada à matéria, servida por órgãos frágeis, limitada em sua ação e poder. Por que não haveria outras naturezas ainda mais nobres, livres dessa escravidão e desses entraves, dotadas de uma força maior e de uma atividade incomparável? Antes que Deus tivesse posto o homem na terra para que este o conhecesse, amasse e servisse, não devia ele ter já chamado outras criaturas para compor sua corte celeste e adorá-lo na sua morada de glória? Deus, enfim, recebe das mãos do homem o tributo de honra e a homenagem deste universo; será espantoso que receba das mãos do anjo o incenso e a prece do homem? Se então os anjos não existissem, a grande obra do Criador não teria o coroamento e a perfeição de que ele era capaz; este mundo, que atesta sua onipotência, não seria mais a obra-prima de sua sabedoria; nossa própria razão, embora fraca e débil, poderia facilmente concebê-lo mais completo e mais acabado.
“A cada nova página dos livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento, é feita menção a essas sublimes inteligências, em invocações piedosas ou em traços históricos. Sua intervenção aparece manifestamente na vida dos patriarcas e dos profetas. Deus serve-se do ministério deles, quer para intimar suas vontades, quer para anunciar os acontecimentos futuros; faz deles quase sempre os órgãos de sua justiça ou de sua misericórdia. A presença deles confunde-se com as diversas circunstâncias do nascimento, da vida e da paixão do Salvador; sua lembrança é inseparável da dos grandes homens e dos fatos mais importantes da antiguidade religiosa. Ele encontra-se mesmo no seio do politeísmo, e sob as fábulas da mitologia; pois a crença de que se trata é tão antiga e tão universal como o mundo; o culto que os pagãos prestavam aos bons e aos maus gênios era apenas uma falsa aplicação da verdade, um resto degenerado do dogma primitivo.
“As palavras do santo concílio de Latrão contêm uma distinção fundamental entre os anjos e os homens. Elas nos ensinam que os primeiros são puros Espíritos, ao passo que estes são compostos de um corpo e uma alma; ou seja, a natureza angélica mantém-se por si mesma, não só sem mistura, mas ainda sem associação real possível com a matéria, por mais leve e sutil que a suponham; ao passo que nossa alma, igualmente espiritual, está associada ao corpo de maneira a formar com ele uma única e mesma pessoa, e esse é essencialmente seu destino.
“Enquanto dura essa união tão íntima da alma com o corpo, essas duas substâncias têm uma vida em comum, e exercem uma sobre a outra uma influência recíproca; a alma não se pode libertar inteiramente da condição imperfeita que lhe advém daí: suas ideias chegam-lhe pelos sentidos, pela comparação dos objetos exteriores, e sempre sob imagens mais ou menos aparentes. Daí decorre que ela não pode contemplar a si mesma, e que não pode representar-se Deus e os anjos sem lhes supor alguma forma visível e palpável. É por isso que os anjos, para se mostrarem aos santos e aos profetas, precisaram recorrer a figuras corporais; mas essas figuras eram apenas corpos aéreos que eles faziam mover sem se identificarem com eles, ou atributos simbólicos relacionados com a missão de que estavam encarregados.
“Seu ser e seus movimentos não estão localizados e circunscritos num ponto fixo e limitado do espaço. Não estando presos a nenhum corpo, não podem ser detidos e limitados, como nós, por outros corpos; não ocupam nenhum lugar e não preenchem nenhum vazio; mas, assim como nossa alma está toda em nosso corpo e em cada uma de suas partes, igualmente eles estão inteiramente, e quase simultaneamente, em todos os pontos e em todas as partes do mundo; mais rápidos do que o pensamento, podem estar em toda a parte num piscar de olhos e aí operar por si mesmos, sem outros obstáculos a seus desígnios senão a vontade de Deus e a resistência da liberdade humana.
“Enquanto estamos reduzidos a ver apenas pouco a pouco, e numa certa medida, as coisas que estão fora de nós, e as verdades da ordem sobrenatural nos aparecem como enigma e num espelho, segundo a expressão do apóstolo São Paulo, eles veem sem esforço o que lhes importa saber, e estão em relação imediata com o objeto de seu pensamento. Seus conhecimentos não são o resultado da indução e do raciocínio, mas dessa intuição clara e profunda que abarca juntamente o gênero e as espécies que dele derivam, os princípios e as consequências que deles decorrem.
“A distância dos tempos, a diferença dos lugares, a multiplicidade dos objetos não podem produzir nenhuma confusão em seu espírito.
“A essência divina, sendo infinita, é incompreensível; ela tem mistérios e profundezas que eles não podem penetrar. Os desígnios particulares da Providência são-lhes ocultados; mas ela revela-lhes o segredo, quando os encarrega, em certas circunstâncias, de anunciá-los aos homens.
“As comunicações de Deus aos anjos, e dos anjos entre si, não se fazem, como entre nós, por meio de sons articulados e outros sinais sensíveis. As puras inteligências não precisam nem dos olhos para ver, nem dos ouvidos para ouvir; também não têm o órgão da voz para manifestar seus pensamentos, este intermediário habitual de nossas conversas não lhes é necessário; mas elas comunicam seus sentimentos de uma maneira que lhes é própria e que é completamente espiritual. Para serem compreendidas, basta-lhes querê-lo.
“Só Deus sabe a quantidade dos anjos. Essa quantidade, sem dúvida, não poderia ser infinita, e não o é; mas, de acordo com os autores sagrados e os doutores da Igreja, é muito considerável e verdadeiramente prodigiosa. Se é natural proporcionar o número de habitantes de uma cidade ao seu tamanho e à sua extensão, não sendo a terra mais do que um átomo em comparação ao firmamento e às imensas regiões do espaço, é preciso concluir que o número de habitantes do céu e do ar é muito maior do que o dos homens.
“Visto que a majestade dos reis tira seu esplendor do número de seus súditos, de seus oficiais e de seus servidores, o que haverá de mais capaz de nos dar uma ideia da majestade do Rei dos reis do que essa multidão incontável de anjos que povoam o céu e a terra, o mar e os abismos, e a dignidade dos que permanecem incessantemente prosternados ou de pé diante de seu trono? “Os doutores da Igreja e os teólogos ensinam geralmente que os anjos estão distribuídos em três grandes hierarquias ou principados, e cada hierarquia em três companhias ou coros.
“Os da primeira e mais alta hierarquia são designados em razão das funções que preenchem no céu. Uns são chamados Serafins, porque estão como que inflamados diante de Deus pelos ardores da caridade; outros Querubins, porque são um reflexo luminosos de sua sabedoria; aqueles Tronos, porque proclamam sua grandeza e fazem resplandecer seu brilho.
“Os da segunda hierarquia recebem seus nomes das operações que lhes são atribuídas no governo geral do universo; são eles: as Dominações, que designam aos anjos das ordens inferiores suas missões e seus encargos; as Virtudes, que realizam os prodígios exigidos pelos grandes interesses da Igreja e do gênero humano; as Potestades, que protegem por sua força e vigilância as leis que regem o mundo físico e moral.
“Os da terceira hierarquia têm por quinhão a direção das sociedades e das pessoas; são: os Principados, encarregados dos reinos, das províncias e das dioceses; os Arcanjos, que transmitem as mensagens de suma importância; os Anjos da Guarda, aqueles que acompanham cada um de nós para velar por nossa segurança e nossa santificação.”
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* Concílio de Latrão.
Refutação
3. – O princípio geral que ressalta desta doutrina é que os anjos são seres puramente espirituais, anteriores e superiores à humanidade, criaturas privilegiados votadas à bem-aventurança suprema e eterna desde sua formação; dotadas, por sua própria natureza, de todas as virtudes e de todos os conhecimentos, sem ter feito nada para adquiri-los. Estão na primeira fileira na obra da criação; na última fileira, a vida puramente material, e entre as duas a humanidade formada pelas almas, seres espirituais, inferiores aos anjos, unidos a corpos materiais.
Várias dificuldades capitais resultam desse sistema. Qual é, primeiro, essa vida puramente material? Trata-se da matéria bruta? Mas a matéria bruta é inanimada e não tem vida por si mesma. Quer-se falar das plantas e dos animais? Seria então uma quarta ordem na criação, pois não se pode negar que haja no animal inteligente mais do que numa planta, e nesta mais do que numa pedra. Quanto à alma humana, ela está unida diretamente a um corpo que é apenas matéria bruta, pois, sem alma, ele não tem mais vida do que um torrão de terra.
Esta divisão carece evidentemente de clareza, e não concorda em nada com a observação; parece-se com a teoria dos quatro elementos derrubada pelos progressos da ciência. Admitamos, entretanto, estes três termos: a criatura espiritual, a criatura humana e a criatura corporal; diz-se que é esse o plano divino, plano majestoso e completo, como convinha à sabedoria eterna. Notemos inicialmente que entre esses três termos não há nenhuma ligação necessária; são três criações distintas, formadas sucessivamente; de uma à outra, há solução de continuidade; ao passo que, na natureza, tudo se encadeia, tudo nos mostra uma admirável lei de unidade, da qual todos os elementos, que não são senão transformações uns dos outros, têm um elemento de ligação entre si. Esta teoria é verdadeira, no sentido em que esses três termos existem evidentemente; somente, ela é incompleta: faltam os pontos de contato, como é fácil demonstrar.
4. – Estes três pontos culminantes da criação são, diz a Igreja, necessários à harmonia do conjunto; se houver um a menos, a obra é incompleta, e não está mais de acordo com a sabedoria eterna. No entanto, um dos dogmas fundamentais da religião diz que a terra, os animais, as plantas, o sol, as estrelas, a própria luz foram criados e tirados do nada há seis mil anos. Antes dessa época, não havia portanto nem criatura humana, nem criatura corporal; durante a eternidade decorrida até então, a obra divina tinha por conseguinte permanecido imperfeita. A criação do universo remontando a seis mil anos é um artigo de fé tão capital que, há poucos anos ainda, a ciência era anatematizada porque vinha destruir a cronologia bíblica, provando a alta antiguidade da terra e de seus habitantes.
Contudo, o concílio de Latrão, concílio ecumênico que dita a lei em matéria de ortodoxia, diz: “Nós cremos firmemente que não há senão um verdadeiro Deus, eterno e infinito, o qual, no começo dos tempos, tirou juntas do nada uma e outra criatura, a espiritual e a corporal.” O começo dos tempos só se pode entender referente à eternidade transcorrida, pois o tempo é infinito, como o espaço: ele não tem começo nem fim. Esta expressão: o começo dos tempos é uma figura que implica a ideia de uma anterioridade ilimitada. O concílio de Latrão crê então firmemente que as criaturas espirituais e as criaturas corporais foram formadas simultaneamente, e tiradas juntas do nada numa época indeterminada no passado. O que se torna então o texto bíblico, que fixa essa criação há seis mil anos? Admitindo que seja esse o começo do universo visível, não é seguramente o do tempo. Em qual acreditar, no do concílio ou no da Bíblia?
5.– O mesmo concílio formula além disso uma estranha afirmação: “Nossa alma, diz ele, igualmente espiritual, está associada ao corpo de maneira a formar com ele uma única e mesma pessoa, e esse é essencialmente seu destino.” Se o destino essencial da alma é estar unida ao corpo, essa união constitui seu estado normal, é seu objetivo, seu fim, visto que tal é seu destino.
No entanto, a alma é imortal e o corpo é mortal; sua união com o corpo ocorre apenas uma vez, segundo a Igreja e, ainda que durasse um século, o que é isso comparado à eternidade? Mas, para muitíssimos, ela é apenas de algumas horas; de que utilidade pode ser para a alma essa união efêmera? Quando, em relação à eternidade, sua maior duração é um tempo imperceptível, será exato dizer que seu destino é estar essencialmente ligada ao corpo? Essa união não é na realidade mais do que um acidente, um ponto na vida da alma, e não seu estado essencial.
Se o destino essencial da alma é estar unida a um corpo material; se, pela sua natureza e segundo o objetivo providencial de sua criação, essa união é necessária às manifestações de suas faculdades, é preciso concluir daí que, sem o corpo, a alma humana é um ser incompleto; ora, para permanecer o que ela é por seu destino, após ter deixado um corpo, é preciso que ela retome outro, o que nos conduz à pluralidade forçosa das existências, dito de outro modo, à reencarnação perpétua. É verdadeiramente estranho que um concílio visto como uma das luzes da Igreja tenha identificado a esse ponto o ser espiritual e o ser material, que não podem de certa maneira existir um sem o outro, visto que a condição essencial de sua criação é estarem unidos.
6.– O quadro hierárquico dos anjos nos ensina que várias ordens têm, em suas atribuições, o governo do mundo físico e da humanidade, que elas foram criadas com esse fim. Mas, segundo o Gênesis, o mundo físico e a humanidade só existem há seis mil anos; o que faziam então esses anjos antes desse tempo, durante a eternidade, visto que os objetos de suas ocupações não existiam? Os anjos foram criados por toda a eternidade? Isso deve ser, visto que eles servem à glorificação do Altíssimo. Se Deus os tivesse criado numa época qualquer determinada, ele teria ficado até então, ou seja, durante uma eternidade, sem adoradores.
7. – Mais adiante é dito: “Enquanto durar essa união tão íntima da alma com o corpo.” Chega então um momento em que essa união não existe mais? Essa afirmação contradiz a que faz dessa união o destino essencial da alma.
É dito ainda: “As ideias chegam-lhe pelos sentidos, pela comparação com os objetos exteriores.” Essa é uma doutrina filosófica em parte verdadeira, mas não no sentido absoluto. É, segundo o eminente teólogo, uma condição inerente à natureza da alma, não receber as ideias a não ser pelos sentidos; ele esquece as ideias inatas, as faculdades por vezes tão transcendentes, a intuição das coisas que a criança traz ao nascer e que não deve a nenhuma instrução. Por que sentido esses jovens pastores, calculadores naturais que espantaram os estudiosos, adquiriram as ideias necessárias à solução quase instantânea dos problemas mais complicados? Pode-se dizer o mesmo de certos músicos, pintores e linguistas precoces.
“Os conhecimentos dos anjos não são o resultado da indução e do raciocínio;” eles sabem porque são anjos, sem ter necessidade de aprender; Deus criou-os assim: a alma, ao contrário deve aprender. Se a alma recebe as ideias apenas pelos órgãos corporais, quais são as que pode ter a alma de uma criança morta ao fim de alguns dias, admitindo, com a Igreja, que ela não renasça?
8. – Aqui apresenta-se uma questão vital: A alma adquire ideias e conhecimentos depois da morte do corpo? Se, uma vez desprendida do corpo, ela não pode adquirir nada, a da criança, do selvagem, do cretino, do idiota, do ignorante, permanecerá sempre o que era no momento da morte; está votada à nulidade pela eternidade.
Se ela adquire novos conhecimentos depois da vida atual, é que ela pode progredir. Sem o progresso ulterior da alma, chega-se a consequências absurdas; com o progresso, chega-se à negação de todos os dogmas baseados no seu estado estacionário: o destino irrevogável, as penas eternas, etc. Se ela progride, onde se detém o progresso? Não há nenhuma razão para que ela não atinja o grau dos anjos ou puros Espíritos. Se ela pode chegar lá, não havia nenhuma necessidade de criar seres especiais e privilegiados, isentos de todo labor, e gozando da bem-aventurança eterna sem ter feito nada para conquistá-la, ao passo que outros seres menos favorecidos obtêm a suprema felicidade apenas à custa de longos e cruéis sofrimentos e das provas mais rudes. Deus pode, sem dúvida, mas se se admitir o infinito de suas perfeições, sem as quais não há Deus, é preciso admitir também que ele não faz nada inútil, nem nada que desminta a soberana justiça e a soberana bondade.
9. – “Visto que a majestade dos reis tira seu esplendor do número de seus súditos, de seus oficiais e de seus servidores, o que haverá de mais capaz de nos dar uma ideia da majestade do Rei dos reis do que essa multidão incontável de anjos que povoam o céu e a terra, o mar e os abismos, e a dignidade dos que permanecem incessantemente prosternados ou de pé diante de seu trono?
Não é rebaixar a Divindade comparar sua glória ao fausto dos soberanos da terra? Essa ideia, inculcada no espírito das massas ignorantes, falseia a opinião que se faz de sua verdadeira grandeza; é sempre Deus reduzido às mesquinhas proporções da humanidade; supor-lhe a necessidade de ter milhões de adoradores incessantemente prosternados ou de pé diante dele é emprestar-lhe as fraquezas dos monarcas déspotas e orgulhosos do Oriente. O que faz os soberanos verdadeiramente grandes? É a quantidade e o esplendor de seus cortesãos? Não; é sua bondade e sua justiça, é o merecido título de pais de seus súditos. Pergunta-se se há algo mais capaz de nos dar uma ideia da majestade de Deus do que a multidão de anjos que compõe sua corte? É certo que há algo melhor do que isso: é representá-lo soberanamente bom, justo e misericordioso para todas as suas criaturas; e não como um Deus colérico, ciumento, vingativo, inexorável, exterminador, parcial, criando para sua própria glória esses seres privilegiados, favorecidos com todos os dons, nascidos para a eterna felicidade, ao passo que aos outros ele faz adquirir penosamente a felicidade, e pune um momento de erro com uma eternidade de suplícios...
10. – O Espiritismo professa a propósito da união da alma e do corpo uma doutrina infinitamente mais espiritualista, para não dizer menos materialista, e que tem a mais a seu favor o ser mais conforme com a observação e o destino da alma. Segundo o que ele nos ensina, a alma é independente do corpo, que não é senão um envoltório temporário; sua essência é a espiritualidade; sua vida normal é a vida espiritual. O corpo não é mais do que um instrumento para o exercício de suas faculdades em suas relações com o mundo material; mas, separada desse corpo, ela goza de suas faculdades com mais liberdade e alcance.
11.– Sua união com o corpo, necessária para seus primeiros desenvolvimentos, ocorre apenas no período que se pode chamar sua infância e sua adolescência; assim que ela atinge certo grau de perfeição e de desmaterialização, essa união não é mais necessária, e a alma só progride pela vida do Espírito. De resto, por mais numerosas que sejam as existências corporais, elas são necessariamente limitadas pela vida do corpo, e sua soma total não compreende, em todos os casos, senão uma imperceptível parte da vida espiritual, que é indefinida.
Os anjos segundo o Espiritismo
12. – Que haja seres dotados de todas as qualidades atribuídas aos anjos, não se pode duvidar. A revelação espírita confirma, sobre esse ponto, a crença de todos os povos; mas ela nos faz conhecer ao mesmo tempo a natureza e a origem desses seres.
As almas ou Espíritos são criados simples ou ignorantes, ou seja, sem conhecimentos e sem consciência do bem e do mal, mas aptos a adquirir tudo o que lhes falta; eles o adquirem pelo trabalho; o objetivo, que é a perfeição, é o mesmo para todos; chegam lá mais ou menos rapidamente em virtude de seu livre-arbítrio e em razão de seus esforços; todos têm os mesmos graus a percorrer, o mesmo trabalho a cumprir; Deus não faz a porção maior nem mais fácil para uns do que para outros, porque todos são seus filhos, e, sendo justo, ele não tem preferência por nenhum. Ele diz-lhes: “Eis a lei que deve ser vossa regra de conduta; só ela pode levar-vos ao objetivo; tudo o que é conforme a esta lei é o bem, tudo o que lhe é contrário é o mal. Sois livres para observá-la ou infringi-la, e sereis assim os árbitros de vosso próprio destino.” Deus portanto não criou o mal; todas as suas leis são para o bem; é o próprio homem que cria o mal infringindo as leis de Deus; se as observasse escrupulosamente, nunca se afastaria do bom caminho.
13. – Mas a alma, nas primeiras fases de sua existência, assim como a criança, carece de experiência; é por isso que é falível. Deus não lhe dá a experiência, mas dá-lhe os meios de adquiri-la; cada passo errado no caminho do mal é para ela um atraso; ela sofre-lhe as consequências, e aprende à sua custa o que deve evitar. É assim que pouco a pouco se desenvolve, se aperfeiçoa e avança na hierarquia espiritual, até que tenha chegado ao estado de puro Espírito ou de anjo. Os anjos são, pois, as almas dos homens chegadas ao grau de perfeição que comporta a criatura, e gozando da plenitude da felicidade prometida. Antes de ter alcançado o grau supremo, eles gozam de uma felicidade relativa ao seu adiantamento, mas essa felicidade não está na ociosidade; está nas funções que agrada a Deus confiar-lhes, e que eles ficam felizes de cumprir, porque essas ocupações são um meio de progredir. (Ver cap. III, o Céu.)
14. – A humanidade não está limitada à terra; ela ocupa os inúmeros mundos que circulam no espaço; ocupou aqueles que desapareceram, e ocupará os que se formarão. Deus criou por toda a eternidade e cria incessantemente. Portanto, muito tempo antes que a terra existisse, seja qual for a antiguidade que se lhe atribua, houvera em outros mundos Espíritos encarnados que percorreram as mesmas etapas que nós, Espíritos de formação mais recente, percorremos neste momento, e que chegaram ao objetivo antes mesmo que tivéssemos saído das mãos do Criador. Por toda a eternidade, houve então anjos ou puros Espíritos; mas perdendo-se sua existência humanitária no infinito do passado, é para nós como se eles sempre tivessem sido anjos.
15.– Assim se acha realizada a grande lei de unidade da criação; Deus nunca esteve inativo; teve sempre puros Espíritos experientes e esclarecidos para a transmissão de suas ordens e para a direção de todas as partes do universo, desde o governo dos mundos até os mais ínfimos detalhes. Não precisou, portanto, criar seres privilegiados, isentos de encargos; todos, antigos ou novos, conquistaram seus graus na luta e por seu próprio mérito; todos, enfim, são os filhos de suas obras. Assim se cumpre igualmente a soberana justiça de Deus.
Origem da crença nos demônios
1.– Os demônios desempenharam, em todas as épocas, um grande papel nas diversas teogonias; embora consideravelmente desacreditados na opinião geral, a importância que lhes é ainda atribuída em nossos dias dá a esta questão certa gravidade, pois ela toca no âmago das crenças religiosas: eis porque é útil examiná-la com os desenvolvimentos que ela comporta.
A crença num poder superior é instintiva nos homens; é encontrada, sob diferentes formas, em todas as idades do mundo. Mas se, no grau de adiantamento intelectual a que chegaram hoje, discutem ainda sobre a natureza e os atributos desse poder, quão mais imperfeitas deviam ser suas noções sobre esse assunto na infância da humanidade!
2.– O quadro que nos é feito da inocência dos povos primitivos em contemplação diante das belezas da natureza, na qual admiram a bondade do Criador, é sem dúvida muito poético, mas falta-lhe a realidade.
Quanto mais o homem se aproxima do estado natural, mais o instinto domina nele, tal como se pode ver ainda nos povos selvagens e bárbaros de nossos dias; o que mais o preocupa, ou melhor, o que o ocupa exclusivamente é a satisfação das necessidades materiais, porque não tem outras. O único sentido que pode torná-lo acessível aos gozos puramente morais desenvolve-se apenas com o tempo e gradualmente; a alma tem sua infância, sua adolescência e sua virilidade, como o corpo humano; mas, para atingir a virilidade que a torna apta a compreender as coisas abstratas, quantas evoluções tem ela que percorrer na humanidade! Quantas existências deve realizar!
Sem remontar às primeiras eras, olhemos à nossa volta as pessoas do campo, e perguntemo-nos que sentimentos de admiração despertam nelas o esplendor do sol nascente, a abóbada estrelada, o gorjeio dos pássaros, o murmúrio das ondas claras, os prados coloridos de flores! Para elas, o sol se levanta porque está habituado, e, desde que dê suficiente calor para amadurecer as colheitas e não demasiado para queimá-las, é tudo o que pedem; se olham o céu, é para saber se fará bom ou mau tempo no dia seguinte; que os pássaros cantem ou não, é-lhes indiferente, desde que eles não lhes comam o grão; às melodias do rouxinol preferem o cacarejo das galinhas e o grunhido de seus porcos; o que pedem aos riachos claros ou lamacentos é não secarem e não causarem inundação; aos prados, dar-lhes boa erva, com ou sem flores: é tudo o que desejam, digamos mais, tudo o que elas compreendem da natureza, porém já estão longe dos homens primitivos!
3.– Se nos reportarmos a estes últimos, vemo-los ainda mais exclusivamente preocupados com a satisfação das necessidades materiais; o que serve para provê-las e o que pode prejudicá-las resumem para eles o bem e o mal neste mundo. Creem num poder sobre-humano; mas, como o que lhes traz um prejuízo material é o que mais os atinge, atribuem-no a esse poder, do qual fazem, aliás, uma ideia muito vaga. Não podendo ainda conceber nada fora do mundo visível e tangível, eles imaginam-no residindo nos seres e nas coisas que os prejudicam. Os animais perniciosos são, portanto, para eles seus representantes naturais e diretos. Pela mesma razão, viram a personificação do bem nas coisas úteis: daí o culto prestado a certos animais, a certas plantas e mesmo a objetos inanimados. Mas o homem é geralmente mais sensível ao mal do que ao bem; o bem parece-lhe natural, ao passo que o mal o afeta mais; é por isso que, em todos os cultos primitivos, as cerimônias em honra do poder maléfico são as mais numerosas: o temor leva vantagem sobre o reconhecimento.
Durante muito tempo o homem não compreendeu senão o bem e o mal físicos; o sentimento do bem moral e do mal moral assinalou um progresso na inteligência humana; somente então o homem entrevi a espiritualidade, e compreendeu que o poder sobre-humano está fora do mundo visível, e não nas coisas materiais. Isso foi obra de algumas inteligências de elite, mas que não puderam, contudo, ultrapassar certos limites.
4. – Como se via uma luta incessante entre o bem e o mal, e o mal frequentemente levar vantagem; que, por outro lado, não se podia racionalmente admitir que o mal fosse obra de um poder benéfico, concluiu-se daí pela existência de dois poderes rivais governando o mundo. Daí nasceu a doutrina dos dois princípios: o do bem e o do mal, doutrina lógica para aquela época, pois o homem ainda era incapaz de conceber outra, e de penetrar a essência do Ser supremo. Como poderia ele ter compreendido que o mal não é mais do que um estado momentâneo do qual pode sair o bem, e que os males que o afligem devem conduzi-lo à bem-aventurança ajudando no seu avanço? Os limites de seu horizonte moral não lhe permitem ver nada fora da vida presente, nem adiante, nem para trás; ele não podia compreender que progredira, nem que progrediria ainda individualmente, e ainda menos que as vicissitudes da vida são o resultado da imperfeição do ser espiritual que está nele, que preexiste e sobrevive ao corpo, e se purifica numa série de existências, até que tenha atingido a perfeição. Para compreender o bem que pode sair do mal, não se deve ver apenas uma existência; é preciso abarcar o conjunto: somente então aparecem as verdadeiras causas e seus efeitos.
5.– O duplo princípio do bem e do mal foi, durante longos séculos e sob diferentes nomes, a base de todas as crenças religiosas. Foi personificado sob os nomes de Oromaz e de Arimã entre os persas, de Jeová e de Satã entre os hebreus. Mas, como todo soberano deve ter ministros, todas as religiões admiram poderes secundários, gênios bons ou maus. Os pagãos personificaram-nos sob uma multidão de individualidades tendo cada qual atribuições especiais para o bem e para o mal, para os vícios e para as virtudes, e às quais deram o nome geral de deuses. Os cristãos e os muçulmanos receberam dos hebreus os anjos e os demônios.
6. – A doutrina dos demônios tem, portanto, sua origem na antiga crença nos dois princípios do bem e do mal. Temos que examiná-la aqui apenas do ponto de vista cristão, e ver se ela está em relação com o conhecimento mais exato que temos hoje em dia dos atributos da Divindade.
Estes atributos são o ponto de partida, a base de todas as doutrinas religiosas; os dogmas, o culto, as cerimônias, os usos, a moral, tudo está em relação com a ideia mais ou menos exata, mais ou menos elevada que se faz de Deus, desde o fetichismo até o Cristianismo. Se a essência íntima de Deus é ainda um mistério para nossa inteligência, compreendemo-lo porém melhor do que nunca, graças aos ensinamentos do Cristo. O Cristianismo, de acordo nisso com a razão, ensina-nos que:
Deus é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições.
Assim como está dito em outra parte (cap. VI, Penas eternas): “Se se retirasse a menor parcela de um único dos atributos de Deus, não se teria mais Deus, porque poderia existir um ser mais perfeito.” Esses atributos, em sua mais absoluta plenitude, são então o critério de todas as religiões, a medida da verdade de cada um dos princípios que elas ensinam. Para que um desses princípios seja verdadeiro, é preciso que ele não prejudique nenhuma das perfeições de Deus. Vejamos se é o caso da doutrina vulgar dos demônios.
Os demônios segundo a Igreja
7.– Segundo a Igreja, Satã, o chefe ou o rei dos demônios, não é uma personificação alegórica do mal, mas sim um ser real, fazendo exclusivamente o mal, ao passo que Deus faz exclusivamente o bem. Vamos a ele tal como nos é dado.
Satã é de toda eternidade, como Deus, ou posterior a Deus? Se ele é de toda eternidade, ele é incriado, e por conseguinte igual a Deus. Deus então não é mais único; há o Deus do bem e o Deus do mal.
É ele posterior? Então é uma criatura de Deus. Visto que não faz senão o mal, que é incapaz de fazer o bem e de se arrepender, Deus criou um ser votado ao mal para sempre. Se o mal não é obra de Deus, mas a de uma de suas criaturas predestinadas a fazê-lo, Deus é sempre seu primeiro autor, e então ele não é infinitamente bom. O mesmo acontece com todos os seres maus chamados demônios.
8.– Durante muito tempo, foi essa a crença sobre esse ponto. Hoje, diz-se: * “Deus, que é a bondade e a santidade por essência, não os criara maus e malfazejos. Sua mão paterna, que gosta de espalhar sobre todas as suas obras um reflexo de suas perfeições infinitas, cumulara-os dos dons mais magníficos. Às qualidades sobre-eminentes de sua natureza, ela acrescentara a generosidade de sua graça; ela os fizera em tudo semelhantes aos Espíritos sublimes que estão na glória e na felicidade; repartidos em todas as suas ordens e misturados em todas as suas fileiras, eles tinham o mesmo fim e os mesmos destinos; seu chefe foi o mais belo arcanjo. Eles poderiam ter, também, merecido ser confirmados para sempre na justiça e admitidos a gozar eternamente da bem-aventurança dos céus. Este último favor teria sido o auge de todos os outros favores de que eram objeto; mas ele devia ser o preço de sua docilidade, e eles se tornaram indignos dele; perderam-no por uma revolta audaciosa e insensata.”
“Qual foi o obstáculo à sua perseverança? Que verdade eles ignoraram? Que ato de fé e de adoração recusaram a Deus? A Igreja e os anais da história santa não o dizem de uma maneira positiva; mas parece certo que eles não aquiesceram nem à mediação do Filho de Deus para eles mesmos, nem à exaltação da natureza humana em Jesus Cristo.
“O Verbo divino, pelo qual todas as coisas foram feitas, é também o único mediador e salvador, no céu e na terra. O fim sobrenatural não foi dado aos anjos e aos homens a não ser em previsão de sua encarnação e de seus méritos; pois não há nenhuma proporção entre as obras dos Espíritos mais eminentes e essa recompensa, que não é senão o próprio Deus; nenhuma criatura poderia ter aí chegado sem essa intervenção maravilhosa e sublime de caridade. Ora, para preencher a distância infinita que separa a essência divina das obras de suas mãos, era preciso que ele reunisse em sua pessoa os dois extremos, e que associasse à sua divindade a natureza do anjo ou a do homem; e ele fez a escolha da natureza humana.
“Esse desígnio, concebido desde a eternidade, foi manifestado aos anjos antes de seu cumprimento; O Homem-Deus foi-lhes mostrado no futuro como Aquele que devia confirmá-los em graça e introduzi-los na glória, com a condição de que eles o adorariam na terra durante sua missão, e no céu pelos séculos dos séculos. Revelação inesperada, visão deslumbrante para os corações generosos e reconhecidos, mas mistério profundo, opressivo para os Espíritos soberbos! Esse fim sobrenatural, esse peso imenso de glória que lhes era proposto não seria portanto unicamente a recompensa de seus méritos pessoais! Jamais poderiam atribuir a si mesmos os títulos e a possessão! Um mediador entre eles e Deus, que injúria feita à sua dignidade! A preferência gratuita concedida à natureza humana, que injustiça! que prejuízo a seus direitos! Essa humanidade, que lhes é tão inferior, vê-lo-ão um dia, deificada por sua união com o Verbo, e sentada à direita de Deus, num trono resplandecente? Consentirão em lhe oferecer eternamente suas homenagens e suas adorações?
“Lúcifer e a terça parte dos anjos sucumbiram a esses pensamentos de orgulho e de ciúme. São Miguel, e com ele a maioria exclamaram: Quem é semelhante a Deus? Ele é o senhor de seus dons e o soberano Senhor de todas as coisas. Glória a Deus e ao Cordeiro que será imolado pela salvação do mundo! Mas o chefe dos rebeldes, esquecendo-se de que devia a seu Criador sua nobreza e suas prerrogativas, escutou apenas sua temeridade, e disse: ‘Sou eu que subirei ao céu; estabelecerei minha morada acima dos astros; sentar-me-ei na montanha da aliança, nos flancos do Aquilão; dominarei as nuvens mais altas, e serei semelhante ao Altíssimo.’ Os que partilhavam seus sentimentos acolheram suas palavras com um murmúrio de aprovação; e eles se encontravam em todas as ordens da hierarquia; mas sua multidão não os colocou ao abrigo do castigo.”
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* As citações seguintes são extraídas da pastoral de Monsenhor Cardeal Gousset, cardeal- arcebispo de Reims, para a quaresma de 1865. Em razão do mérito pessoal e da posição do autor, pode-se considerá-las como a última expressão da Igreja sobre a doutrina dos demônios.
9.– Esta doutrina suscita várias objeções.
1º Se Satã e os demônios eram anjos, é porque eram perfeitos; como, sendo perfeitos, puderam falhar e ignorar a esse ponto a autoridade de Deus, na presença do qual se encontravam? Conceber-se-ia ainda que, se não tivessem chegado a esse grau eminente senão gradualmente e depois de terem passado pelo caminho da imperfeição, pudessem ter tido um retorno deplorável; mas o que torna a coisa mais incompreensível é que no-los representam como tendo sido criados perfeitos. A consequência dessa teoria é esta: Deus quisera criar neles seres perfeitos, visto que os cumulara de todos os dons, e enganouse; portanto, segundo a Igreja, Deus não é infalível. *
2º Visto que nem a Igreja nem os anais da história santa se explicam sobre a causa da revolta dos anjos contra Deus, que somente parece certo que ela esteve na recusa deles de reconhecer a missão futura do Cristo, que valor pode ter o quadro tão preciso e tão detalhado da cena que ocorreu naquela ocasião? De que fonte foram tiradas as palavras tão nítidas relatadas como tendo sido pronunciadas, e até os simples murmúrios? De duas coisas uma: ou a cena é verdadeira, ou não o é. Se é verdadeira, não há nenhuma incerteza, e então por que a Igreja não decide a questão? Se a Igreja e a história se calam, se a causa só parece certa, não é senão uma suposição, e a descrição da cena é uma obra de imaginação. **
3º As palavras atribuídas a Lúcifer acusam uma ignorância que é espantoso encontrar num arcanjo que, por sua própria natureza e no grau em que está colocado, não deve compartilhar, sobre a organização do universo, os erros e os preconceitos que os homens professaram até que a ciência tivesse vindo esclarecê-los. Como pode ele dizer: “Estabelecerei minha morada acima dos astros; dominarei as nuvens mais altas”? É sempre a antiga crença na terra como centro do mundo, no céu das nuvens que se estende até às estrelas, à região limitada das estrelas formando abóbada, e que a astronomia nos mostra disseminadas ao infinito, no espaço infinito. Como se sabe hoje que as nuvens não se estendem além de duas léguas da superfície da terra, para dizer que ele dominará as nuvens mais altas, e falar das montanhas, era preciso que a cena se passasse na superfície da terra, e que fosse aí a morada dos anjos; se essa morada é nas regiões superiores, era inútil dizer que ele se elevaria além das nuvens. Fazer os anjos terem uma linguagem marcada pela ignorância, é admitir que os homens, hoje, sabem mais do que os anjos. A Igreja sempre cometeu o erro de não levar em conta os progressos da ciência.
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* Esta doutrina monstruosa é afirmada por Moisés, quando diz (Gênesis, cap. VI, v. 6 e 7): “Ele se arrependeu de ter feito o homem na terra. E, tocado de dor até ao fundo do coração, – ele disse: ‘Exterminarei da superfície da terra o homem que criei; exterminarei tudo, desde o homem até os animais, desde tudo o que rasteja sobre a terra até os pássaros do céu: pois eu me arrependo de tê-los feito.’”
Um Deus que se arrepende do que fez não é perfeito nem infalível: logo, não é Deus. São, no entanto, as palavras que a Igreja proclama como verdades santas. Também não se vê muito bem o que havia em comum entre os animais e a perversidade dos homens para merecerem seu extermínio.
** Encontra-se em Isaías, cap. XIV, v. 11 e seguintes: – “Teu orgulho foi precipitado nos infernos; teu corpo morto caiu por terra; tua cama será tua podridão, e tua vestimenta serão os vermes. – Como caíste do céu, Lúcifer, tu que parecias tão brilhante ao alvorecer? Como foste jogado na terra, tu que golpeavas as nações; – que dizias em teu coração: Subirei ao céu, estabelecerei meu trono acima dos astros de Deus, sentar-me-ei na montanha da aliança, nos flancos do Aquilão; colocar-me-ei acima das nuvens mais altas, e serei semelhante ao Altíssimo? – E no entanto foste precipitado dessa glória no inferno, até o mais profundo dos abismos. – Aqueles que te virem aproximar-se-ão de ti, e, depois de te terem encarado, dir-te- ão: Foi esse homem que apavorou a terra, que semeou o terror nos reinos, que fez do mundo um deserto, que destruiu suas cidades, e que manteve acorrentados aqueles que fizera prisioneiros?”
Estas palavras do profeta não são relativas à revolta dos anjos, mas uma alusão ao orgulho e à queda do rei da Babilônia, que mantinha os judeus em cativeiro, assim como provam os últimos versículos. O rei da Babilônia é designado, por alegoria, sob o nome de Lúcifer, mas não é aí feita nenhuma menção à cena descrita anteriormente. Estas palavras são as do rei que dizia em seu coração, e se colocava, por seu orgulho, acima de Deus, cujo povo mantinha cativo. A predição da libertação dos judeus, da ruína da Babilônia e da derrota dos assírios é, aliás, o assunto exclusivo deste capítulo.
10.– A resposta à primeira objeção acha-se na passagem seguinte:
“A Escritura e a tradição dão o nome de céu ao lugar onde os anjos haviam sido postos no momento de sua criação. Mas não era o céu dos céus, o céu da visão beatífica, onde Deus se mostra a seus eleitos face a face, e onde seus eleitos o contemplam sem esforços e sem nuvens; pois, ali, não há mais perigo, nem possibilidade de pecar; a tentação e a fraqueza são aí desconhecidas; a justiça, a alegria, a paz reinam numa imutável segurança; a santidade e a glória são inadmissíveis. Era portanto uma outra região celeste, uma esfera luminosa e afortunada, onde essas nobres criaturas, amplamente favorecidas pelas comunicações divinas, deviam recebê-las e aderir a elas pela humildade da fé, antes de serem admitidas a ver-lhes claramente a realidade na própria essência de Deus.”
Resulta do que precede que os anjos que falharam pertenciam a uma categoria menos elevada, menos perfeita, e que eles ainda não tinham chegado ao lugar supremo onde a falta é impossível. Seja; mas então há aqui uma contradição manifesta, pois está dito antes que: “Deus os fizera em tudo semelhantes aos Espíritos sublimes; que, repartidos em todas as ordens e misturados a todas as suas fileiras, eles tinham o mesmo fim e o mesmo destino; que seu chefe era o mais belo arcanjo.” Se eles foram feitos em tudo semelhantes aos outros, não eram então de uma natureza inferior; se estavam misturados a todas as suas fileiras, não estavam num lugar especial. A objeção subsiste portanto inteiramente.
11. – Há outra objeção que é, incontestavelmente, a mais grave e mais séria.
Está dito: “Esse desígnio (a mediação do Cristo), concebido desde a eternidade, foi manifestado aos anjos muito tempo antes de seu cumprimento.” Logo, Deus sabia desde a eternidade que os anjos, tanto quanto os homens, precisariam dessa mediação. Ele sabia, ou não sabia, que certos anjos falhariam; que essa queda acarretaria para eles a danação eterna sem esperança de retorno; que eles seriam destinados a tentar os homens; que aqueles dentre estes últimos que se deixassem seduzir sofreriam o mesmo destino. Se ele o sabia, criou portanto esses anjos, com conhecimento de causa, para sua perda irrevogável e para a da maior parte do gênero humano. Diga-se o que se quiser, é impossível conciliar sua criação, numa semelhante previsão, com a soberana bondade. Se ele não o sabia, não era onipotente. Em ambos os casos, é a negação de dois atributos sem a plenitude dos quais Deus não seria Deus.
12. – Se se admite a falibilidade dos anjos, como a dos homens, a punição é uma consequência natural e justa da falta; mas se se admitir ao mesmo tempo a possibilidade do resgate, pelo retorno ao bem, a retomada da graça após o arrependimento e a expiação, nada há que desminta a bondade de Deus. Deus sabia que eles falhariam, que seriam punidos, mas sabia também que esse castigo temporário seria um meio de fazê-los compreender sua falta e viraria a favor deles. Assim se verificaria esta afirmação do profeta Ezequiel: “Deus não quer a morte do pecador, mas sua salvação.” * O que seria a negação dessa bondade é a inutilidade do arrependimento e a impossibilidade do retorno ao bem. Nessa hipótese, é portanto rigorosamente exato dizer que: “Esses anjos, desde sua criação, visto que Deus não podia ignorá-lo, foram votados ao mal para sempre, e predestinados a se tornarem demônios, para arrastar os homens ao mal.”
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* Ver acima, cap. VII, n0 20, citação de Ezequiel.
13. – Vejamos agora qual é seu destino e o que fazem.
“Mal sua revolta rebentou na linguagem dos Espíritos, ou seja, nos ímpetos de seus pensamentos, foram banidos irrevogavelmente da cidade celeste e precipitados no abismo.
“Por estas palavras, entendemos que eles foram relegados a um lugar de suplícios, onde sofrem a pena do fogo, conforme este texto do Evangelho, que saiu da própria boca do Salvador: ‘Ide, malditos, ao fogo eterno que foi preparado para o demônio e para seus anjos.’ São Pedro diz expressamente: ‘que Deus os entregou às correntes e às torturas do inferno; mas nem todos aí permanecem para sempre; é somente no fim do mundo que eles aí serão encerrados para sempre, com os reprovados. Presentemente, Deus permite que eles ocupem ainda um lugar nessa criação à qual pertencem; na ordem das coisas à qual se vincula sua existência, nas relações enfim que eles deviam ter com o homem, e da qual fazem o mais pernicioso abuso. Enquanto uns estão em sua morada tenebrosa, e servem de instrumento à justiça divina, contra as almas desafortunadas que seduziram, uma infinidade de outros, formando legiões invisíveis, sob o comando de seus chefes, residem nas camadas inferiores de nossa atmosfera e percorrem todas as partes do globo. Misturam-se a tudo o que acontece aqui embaixo, e tomam quase sempre parte muito ativa nisso.’”
No que se refere às palavras do Cristo, sobre o suplício do fogo eterno, esta questão é tratada no capítulo IV, O Inferno.
14. – Segundo esta doutrina, só uma parte dos demônios está no inferno; a outra vagueia em liberdade, misturando-se a tudo o que ocorre aqui embaixo, entregando-se ao prazer de fazer o mal, e isso até o fim do mundo, cuja época indeterminada não terá lugar tão cedo. Por que então essa diferença? São eles menos culpados? Seguramente não. A menos que eles saiam de lá por sua vez, o que pareceria resultar desta passagem: “Enquanto uns estão em sua morada tenebrosa, e servem aí de instrumento à justiça divina contra as almas desafortunadas que seduziram.”
Suas funções consistem, portanto, em atormentar as almas que seduziram. Assim, eles não estão encarregados de punir aquelas que são culpadas de faltas livre e voluntariamente cometidas, mas daquelas que eles provocaram. Eles são, ao mesmo tempo, a causa da falta e o instrumento do castigo; e, coisa que a justiça humana, por mais imperfeita que seja, não admitiria, a vítima que sucumbe, por fraqueza, à ocasião que se faz nascer para tentá-la, é punida tão severamente quanto o agente provocador que emprega o ardil e a astúcia; mais severamente mesmo, pois ela vai para o inferno, ao deixar a terra, para jamais de lá sair, e lá sofrer sem trégua nem misericórdia durante a eternidade, ao passo que aquele que é a causa primeira de sua falta goza da prorrogação e da liberdade até o fim do mundo! A justiça de Deus não é então mais perfeita do que a dos homens?
15. – Não é tudo. “Deus permite que eles ocupem ainda um lugar nessa criação, nas relações que eles deviam ter com o homem e da qual fazem o mais pernicioso abuso.” Deus podia ignorar o abuso que eles fariam da liberdade que lhes concede? Então por que ele a concede? Logo, é com conhecimento de causa que ele entrega suas criaturas à mercê deles, sabendo, em virtude de sua onisciência, que elas sucumbirão e terão o destino dos demônios. Não era suficiente a própria fraqueza delas, sem permitir que fossem estimuladas ao mal por um inimigo tanto mais perigoso quanto invisível? Ainda, se o castigo fosse apenas temporário e o culpado pudesse redimir-se pela reparação! Mas não: está condenado para toda a eternidade. Seu arrependimento, seu retorno ao bem, seus lamentos são supérfluos.
Os demônios são assim os agentes provocadores predestinados a recrutar almas para o inferno, e isso com a permissão de Deus, que sabia, criando essas almas, o destino que lhes estava reservado. O que se diria, na terra, de um juiz que fizesse isso para povoar as prisões? Estranha ideia que nos dão da Divindade, de um Deus cujos atributos essenciais são a soberana justiça e a soberana bondade! E é em nome de Jesus Cristo, daquele que não pregou senão o amor, a caridade e o perdão, que se ensinam semelhantes doutrinas! Houve um tempo em que tais anomalias passavam desapercebidas; não se compreendiam, não se sentiam; o homem, curvado sob o jugo do despotismo, submetia cegamente sua razão, ou melhor, abdicava de sua razão; mas hoje a hora da emancipação soou: ele compreende a justiça, ele a quer durante sua vida e após a morte; é por isso que ele diz: “Isso não existe, isso não é possível, ou Deus não é Deus!”
16. – “O castigo segue por toda a parte esses seres caídos e malditos, por toda a parte eles carregam seu inferno consigo: não têm mais paz nem repouso; as próprias doçuras da esperança se transformaram para eles em amargura: ela lhes é odiosa. A mão de Deus atingiu-os no próprio ato de seu pecado, e sua vontade se obstinou no mal. Tornados perversos, não querem cessar de sê-lo, e são-no para sempre.
“Eles são, depois do pecado, o que o homem é depois da morte. A reabilitação daqueles que caíram é portanto impossível; sua perda é doravante sem volta, e eles perseveram em seu orgulho, perante Deus, em seu ódio contra o Cristo, em seu ciúme contra a humanidade.
“Não tendo podido apropriar-se da glória do céu, pelo impulso de sua ambição, esforçam-se para estabelecer seu império na terra e banir daí o reino de Deus. O Verbo feito carne cumpriu, apesar deles, seus desígnios para a salvação e a glória da humanidade; todos os meios de ação de que eles dispõem são dedicados a lhe roubar as almas que ele resgatou; o ardil e a importunação, a mentira e a sedução, eles lançam mão de tudo para levá-las ao mal e consumar sua ruína.
“Com tais inimigos, a vida do homem, desde o berço até o túmulo, não pode ser, infelizmente, senão uma luta perpétua, pois eles são poderosos e infatigáveis.
“Esses inimigos, com efeito, são os mesmos que, após terem introduzido o mal no mundo, conseguiram cobrir a terra com as espessas trevas do erro e do vício; os que, durante longos séculos, se fizeram adorar como deuses, e que reinaram soberanos sobre os povos da antiguidade; os que, por fim, exercem ainda seu império tirânico sobre as regiões idólatras, e que fomentam a desordem e o escândalo até no seio das sociedades cristãs.
“Para compreender todos os recursos que eles têm a serviço de sua maldade, basta notar que eles não perderam nada das prodigiosas faculdades que são apanágio da natureza angélica. Sem dúvida, o futuro e sobretudo a ordem sobrenatural têm mistérios que Deus se reservou e que eles não podem descobrir; mas sua inteligência é bem superior à nossa, porque eles percebem numa vista d’olhos os efeitos em suas causas, e as causas em seus efeitos. Essa penetração permite-lhes anunciar de antemão acontecimentos que escapam às nossas conjeturas. A distância e a diversidade dos lugares se apagam diante de sua agilidade. Mais prontos do que o relâmpago, mais rápidos do que o pensamento, eles se acham quase ao mesmo tempo em diversos pontos do globo, e podem descrever ao longe as coisas de que são testemunhas no próprio momento em que elas se realizam.
“As leis gerais pelas quais Deus rege e governa este universo não são do domínio deles; eles não podem infringi-la, nem por conseguinte predizer ou realizar verdadeiros milagres; mas possuem a arte de imitar e falsificar, dentro de certos limites, as obras divinas; sabem que fenômenos resultam da combinação dos elementos, e predizem com certeza os que acontecem naturalmente, como os que eles mesmos têm o poder de produzir. Daí, esses numerosos oráculos, esses prestígios extraordinários cuja recordação os livros sagrados e profanos nos guardaram, e que serviram de base e de alimento a todas as superstições.
“Sua substância simples e imaterial subtrai-os ao nosso olhar; eles estão a nosso lado sem serem percebidos; impressionam nossa alma sem tocar nossos ouvidos; cremos obedecer a nosso próprio pensamento, enquanto sofremos suas tentações e sua funesta influência. Nossas disposições, ao contrário, são-lhes conhecidas pelas impressões que sentimos, e eles nos atacam,habitualmente, pelo nosso lado fraco. Para nos seduzirem mais seguramente, têm o costume de nos apresentar iscas e sugestões conformes a nossas tendências. Modificam sua ação segundo as circunstâncias e de acordo com os traços característicos de cada temperamento. Mas suas armas favoritas são a mentira e a hipocrisia.”
17. – O castigo, diz-se, segue-os por toda a parte; não têm mais paz nem repouso. Isto não destrói a observação feita sobre a prorrogação de que gozam os que não estão no inferno, prorrogação tanto menos justificada quanto, estando fora, eles fazem mais mal. Sem dúvida nenhuma, eles não são bem-aventurados como os bons anjos; mas não conta nada a liberdade de que gozam? Se não têm a felicidade moral que a virtude concede, são incontestavelmente menos desgraçados que seus cúmplices que estão nas chamas. E depois, para o malvado, há uma espécie de gozo em fazer o mal com toda a liberdade. Perguntai a um criminoso se lhe é indiferente estar na prisão ou correr pelos campos, e cometer suas más ações à sua vontade. A posição é exatamente a mesma.
O remorso, diz-se, persegue-os sem trégua nem misericórdia. Mas esquece-se que o remorso é o precursor imediato do arrependimento, se não for já o próprio arrependimento. Ora, diz-se “Tornados perversos, não querem cessar de sê-lo, e são-no para sempre.” Visto que não querem cessar de ser perversos, é que não têm remorsos; se tivessem o menor remorso, cessariam de fazer o mal e pediriam perdão. Logo, o remorso não é para eles um castigo
18. – “Eles são, depois do pecado, o que o homem é depois da morte. A reabilitação daqueles que caíram é portanto impossível.” De onde vem essa impossibilidade? Não se compreende que ela seja a consequência da semelhança deles com o homem depois da morte, frase que, de resto, não é muito clara. Essa impossibilidade vem da vontade deles ou da vontade de Deus? Se provém da vontade deles, denota uma extrema perversidade, um endurecimento absoluto no mal; desde logo, não se compreende que seres tão fundamentalmente maus tenham podido um dia ser anjos de virtude, e que, durante o tempo indefinido que passaram entre esses últimos, não tenham deixado transparecer nenhum traço de sua má natureza. Se é a vontade de Deus, compreende-se ainda menos que ele inflija, como castigo, a impossibilidade do retorno ao bem, após uma primeira falta. O Evangelho não diz nada semelhante.
19. – “Sua perda, acrescenta-se, é doravante sem retorno, e eles perseveram em seu orgulho perante Deus.” De que lhes serviria não perseverar, visto que todo arrependimento é inútil? Se tivessem a esperança de uma reabilitação, a qualquer custo que fosse, o bem teria um objetivo para eles, ao passo que assim não o tem. Se eles perseveram no mal, é portanto porque a porta da esperança lhes está fechada. E por que Deus a fecha? Para se vingar da ofensa que recebeu da falta de submissão deles. Assim, para saciar seu ressentimento contra alguns culpados, ele prefere vê-los, não só sofrer, mas fazer o mal em vez do bem; induzir ao mal e impelir à perdição eterna todas as suas criaturas do gênero humano, ao passo que bastava um simples ato de clemência para evitar tão grande desastre, e um desastre previsto desde a eternidade!
Tratava-se, por ato de clemência, de uma graça pura e simples que talvez fosse um encorajamento ao mal? Não, mas de um perdão condicional, subordinado a um sincero retorno ao bem. Em vez de uma palavra de esperança e de misericórdia, faz-se Deus dizer: Pereça toda a raça humana, antes que minha vingança! E espantam-se que, com tal doutrina, haja incrédulos e ateus! É assim que Jesus nos representa seu Pai? Ele que nos faz uma lei expressa do esquecimento e do perdão das ofensas, que nos diz para pagar o mal com o bem, que põe o amor aos inimigos em primeiro lugar entre as virtudes que devem valer-nos o céu, gostaria ele então que os homens fossem melhores, mais justos, mais compassivos do que o próprio Deus?
Os demônios segundo o Espiritismo
20. – Segundo o Espiritismo, nem os anjos nem os demônios são seres à parte; a criação dos seres inteligentes é una. Unidos a corpos materiais, eles constituem a humanidade que povoa a terra e as outras esferas habitadas; desprendidos desse corpo, eles constituem o mundo espiritual ou dos Espíritos que povoam os espaços. Deus criou-os perfectíveis; deu-lhes por objetivo a perfeição, e a bem-aventurança que é sua consequência, mas não lhes deu a perfeição; quis que eles a devessem a seu trabalho pessoal, a fim de que tivessem esse mérito. Desde o instante de sua formação eles progridem, quer no estado de encarnação, quer no estado espiritual; chegados ao apogeu, são puros Espíritos, ou anjos segundo a denominação vulgar; de sorte que, desde o embrião do ser inteligente até o anjo, há uma cadeia ininterrupta da qual cada elo marca um grau no progresso.
Resulta daí que existem Espíritos em todos os graus de avanço moral e intelectual, segundo estejam no alto, na parte inferior, ou no meio da escala. Há Espíritos, por conseguinte, em todos os graus de saber e de ignorância, de bondade e de maldade. Nas posições inferiores, há os que estão ainda profundamente inclinados ao mal, e nele se comprazem. Pode-se chamá-los demônios, se se quiser, pois são capazes de todas as maldades atribuídas a estes últimos. Se o Espiritismo não lhes dá esse nome, é que se vincula a ele a ideia de seres distintos da humanidade, de uma natureza essencialmente perversa, devotados ao mal por toda a eternidade e incapazes de progredir no bem.
21. – Segundo a doutrina da Igreja, os demônios foram criados bons, e tornaram-se maus por sua desobediência: são anjos caídos; foram colocados por Deus no alto da escala, e desceram. Segundo o Espiritismo, são Espíritos imperfeitos, mas que se aperfeiçoarão; ainda estão na parte inferior da escala, e subirão.
Aqueles que, por sua indiferença, sua negligência, sua obstinação e sua má vontade permanecem mais tempo nas posições inferiores, carregam essa pena, e o hábito do mal torna-lhes mais difícil sair dele; mas chega um tempo em que se cansam dessa existência penosa e dos sofrimentos que dela decorrem; é então que, comparando sua situação com a dos bons Espíritos, compreendem que seu interesse está no bem, e procuram aperfeiçoar-se, mas fazem-no por sua própria vontade e sem serem coagidos. Estão submetidos à lei do progresso por sua aptidão a progredir, mas não progridem contra sua vontade. Deus lhes fornece incessantemente os meios para tal, mas eles são livres de aproveitá-los ou não. Se o progresso fosse obrigatório, eles não teriam nenhum mérito, e Deus quer que eles tenham o de suas obras; ele não coloca nenhum na primeira posição por privilégio, mas a primeira posição está aberta a todos, e eles só chegam lá por seus esforços. Os anjos mais elevados conquistaram seu grau como os outros passando pelo caminho comum.
22. – Chegados a certo grau de purificação, os Espíritos têm missões em proporção com seu avanço; eles cumprem todas as que são atribuídas aos anjos das diferentes ordens. Como Deus criou desde a eternidade, desde a eternidade houve Espíritos para satisfazer todas as necessidades do governo do universo. Uma única espécie de seres inteligentes, submetidos à lei do progresso, basta portanto para tudo. Esta unidade na criação, com o pensamento de que todos têm um ponto de partida, o mesmo caminho a percorrer, e que eles sobem por seu próprio mérito, corresponde bem melhor à justiça de Deus, do que a criação de espécies diferentes mais ou menos favorecidas por dons naturais que seriam outros tantos privilégios.
23. – A doutrina vulgar sobre a natureza dos anjos, dos demônios e das almas humanas, não admitindo a lei do progresso, e vendo porém seres em diferentes graus, concluiu daí que eles eram o produto de outras tantas criações especiais. Ela chega assim a fazer de Deus um pai parcial, dando tudo a alguns de seus filhos, ao passo que impõe aos outros o mais rude trabalho. Não é espantoso que durante muito tempo os homens não tenham achado nada de chocante nessas preferências, enquanto faziam o mesmo a respeito de seus próprios filhos, pelos direitos de primogenitura e os privilégios do nascimento; podiam eles crer fazer mais mal do que Deus? Mas hoje em dia o círculo das ideias se alargou; eles veem mais claro; têm noções mais nítidas da justiça; querem-na para eles, e se nem sempre a encontram na terra, esperam ao menos encontrá-la mais perfeita no céu; é por isso que toda doutrina em que a justiça divina não aparece ao homem em sua maior pureza, repugna à sua razão.
1. – Os fenômenos espíritas modernos chamaram a atenção para os fatos análogos que ocorreram em todas as épocas, e a história nunca foi tão consultada a esse respeito quanto nestes últimos tempos. Da semelhança dos efeitos, concluiu-se pela unidade da causa. Como para todos os fatos extraordinários cuja razão é desconhecida, a ignorância viu aí uma causa sobrenatural, e a superstição amplificou-os acrescentando-lhes crenças absurdas; daí uma multidão de lendas que, na maior parte, são uma mistura de um pouco de verdade e de muita mentira.
2. – As doutrinas sobre o demônio, que prevaleceram por tanto tempo, haviam exagerado tanto o seu poder, que tinham, por assim dizer, feito esquecer Deus; é por isso que lhe concediam o mérito de tudo o que parecia ultrapassar o poder humano; em toda a parte aparecia a mão de Satã; as melhores coisas, as descobertas mais úteis, todas aquelas que podiam tirar o homem da ignorância e alargar o círculo de suas ideias, foram muitas vezes olhadas como obras diabólicas. Os fenômenos espíritas, multiplicados em nossos dias, mais bem observados sobretudo com a ajuda das luzes da razão e dos dados da ciência, confirmaram, é verdade, a intervenção de inteligências ocultas, mas agindo sempre dentro dos limites das leis da natureza, e revelando, por sua ação, uma nova força e leis desconhecidas até este dia. A questão se reduz, portanto, a saber de que ordem são essas inteligências.
Enquanto não se teve sobre o mundo espiritual senão noções incertas ou sistemáticas, pôde haver equívoco; mas hoje que observações rigorosas e estudos experimentais esclareceram a natureza dos Espíritos, sua origem e seu destino, seu papel no universo e seu modo de ação, a questão está resolvida pelos fatos. Sabe-se agora que são almas daqueles que viveram na terra. Sabe-se também que as diversas categorias de Espíritos bons e maus não constituem seres de diferentes espécies, mas assinalam apenas graus diversos de avanço. Segundo a posição que ocupam, em razão de seu desenvolvimento intelectual e moral, aqueles que se manifestam apresentam-se sob aspectos muito opostos, o que não os impede de terem saído da grande família humana, tanto quanto o selvagem, o bárbaro e o homem civilizado.
3. – Sobre este ponto, como sobre muitos outros, a Igreja mantém suas velhas crenças no que se refere aos demônios. Ela diz: “Temos princípios que não variaram desde há dezoito séculos e que são imutáveis.” Seu erro é precisamente não levar em conta o progresso das ideias, e crer Deus muito pouco sábio para não proporcionar a revelação ao desenvolvimento da inteligência, para usar com os homens primitivos a mesma linguagem que com os homens avançados. Se, enquanto a humanidade avança, a religião se agarra aos velhos erros, tanto em matéria espiritual quanto em matéria científica, chega um momento em que ela é ultrapassada pela incredulidade.
4. – Eis como a Igreja explica a intervenção exclusiva dos demônios nas manifestações modernas. *
“Em sua intervenção exterior, os demônios não estão menos atentos a dissimular sua presença, para afastar as suspeitas. Sempre ardilosos e pérfidos, atraem o homem para as suas emboscadas antes de lhe imporem as correntes da opressão e da servidão. Aqui, despertam a curiosidade por fenômenos e jogos pueris; ali, impressionam pelo espanto e subjugam pela atração do maravilhoso. Se o sobrenatural aparece, se seu poder os desmascara, eles acalmam e apaziguam as apreensões, solicitam a confiança, provocam a familiaridade. Ora se fazem passar por divindades e bons gênios; ora tomam emprestados os nomes e mesmo os traços dos mortos que deixaram uma memória entre os vivos. Graças a essas fraudes dignas da antiga serpente, eles falam, e são escutados; eles dogmatizam, e crê-se neles; misturam a suas mentiras algumas verdades, e fazem aceitar o erro sob todas as formas. É aí que desembocam as pretensas revelações de além-túmulo; é para obter esse resultado que a madeira, a pedra, as florestas e as fontes, o santuário dos ídolos, o pé das mesas, a mão das crianças, proferem oráculos; é por isso que a pitonisa profetiza em seu delírio, e que o ignorante, num misterioso sono, se torna subitamente o doutor da ciência. Enganar e perverter, tal é, em toda parte e em todos os tempos, o objetivo final dessas estranhas manifestações.
Os resultados surpreendentes dessas observâncias ou desses atos, na maioria bizarros e ridículos, não podendo proceder de sua virtude intrínseca, nem da ordem estabelecida por Deus, não se pode esperá-los a não ser do concurso das potências ocultas. Tais são, notadamente, os fenômenos extraordinários obtidos, em nossos dias, pelos procedimentos, em aparência inofensivos do magnetismo, e o órgão inteligente das mesas falantes. Por meio dessas operações da magia moderna, vemos reproduzirem-se entre nós as evocações e os oráculos, as consultas, as curas e os prestígios que ilustraram os templos dos ídolos e os antros das sibilas. Como antigamente, comanda-se a madeira e a madeira obedece; interroga-se, e ela responde em todas as línguas e sobre todas as questões; fica-se na presença de seres invisíveis que usurpam os nomes dos mortos, e cujas pretensas revelações são marcadas pelo cunho da contradição e da mentira; formas ligeiras e sem consistência aparecem de repente, e se mostram dotadas de força sobre-humana.
Quais são os agentes secretos desses fenômenos, e os verdadeiros atores dessas cenas inexplicáveis? Os anjos não aceitariam esses papéis indignos, e não se prestariam a todos os caprichos de uma vã curiosidade. As almas dos mortos, que Deus proíbe consultar, permanecem na morada que sua justiça lhes designou, e elas não podem, sem sua permissão, pôr-se às ordens dos vivos. Os seres misteriosos que acorrem assim ao primeiro apelo do herético e do ímpio como do fiel, do crime como da inocência, não são nem os enviados de Deus, nem os apóstolos da verdade e da salvação, mas os sequazes do erro e do inferno. Apesar do cuidado que tomam de se esconder sob os nomes mais veneráveis, traem-se pelo vazio de suas doutrinas, não menos do que pela baixeza de seus atos e a incoerência de suas palavras. Esforçam-se por apagar do símbolo religioso os dogmas do pecado original, da ressurreição dos corpos, da eternidade das penas, e toda a revelação divina, a fim de retirar às leis sua verdadeira sanção, e abrir ao vício todas as barreiras. Se suas sugestões pudessem prevalecer, elas formariam uma religião cômoda, para uso do socialismo e de todos aqueles que a noção do dever e da consciência importuna. A incredulidade de nosso século preparou-lhes o caminho. Possam as sociedades cristãs, por um retorno sincero à fé católica, escapar ao perigo desta nova e temível invasão!”
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* As citações deste capítulo são tiradas da mesma pastoral que as do capítulo precedente do qual são a sequência, e têm a mesma autoridade.
5. – Toda esta teoria repousa sobre este princípio, de que os anjos e os demônios são seres distintos das almas dos homens, e que estas são o produto de uma criação especial, inferior mesmo aos demônios, em inteligência, em conhecimentos e faculdades de toda sorte. Ela conclui pela intervenção exclusiva dos maus anjos nas manifestações antigas e modernas atribuídas aos Espíritos dos mortos.
A possibilidade para as almas de se comunicarem com os vivos é uma questão de fato, um resultado de experiência e de observação que não discutiremos aqui. Mas admitamos, por hipótese, a doutrina acima, e vejamos se ela não se destrói por seus próprios argumentos.
6. – Nas três categorias de anjos, segundo a Igreja, uma ocupa-se exclusivamente do céu; outra do governo do universo; a terceira está encarregada da terra, e nesta se encontram os anjos da guarda nomeados para a proteção de cada indivíduo. Somente uma parte dos anjos desta categoria tomou parte na revolta e foi transformada em demônios. Se Deus permitiu a estes últimos impelir os homens à sua perda, pelas sugestões de todos os gêneros e manifestações ostensivas, por que, se ele é soberanamente justo e bom, lhes teria concedido o imenso poder de que gozam, deixado uma liberdade de que fazem tão pernicioso uso, sem permitir aos bons anjos fazerem um contrapeso por manifestações semelhantes dirigidas para o bem? Admitamos que Deus tenha dado uma parte igual de poder aos bons e aos maus, o que seria já um favor exorbitante em benefício destes últimos, o homem ao menos teria sido livre para escolher; mas dar-lhes o monopólio da tentação, com a faculdade de simular o bem a ponto de enganarem, para seduzir mais facilmente, seria uma verdadeira armadilha montada à sua fraqueza, sua inexperiência, sua boa fé; digamos mais: seria abusar de sua confiança em Deus. A razão recusa-se a admitir tal parcialidade em benefício do mal. Vejamos os fatos.
7. – Concedem-se aos demônios faculdades transcendentes; eles não perderam nada de sua natureza angélica; têm o saber, a perspicácia, a previdência, a clarividência dos anjos, e ademais, a astúcia, a habilidade e o ardil em supremo grau. Seu objetivo é desviar os homens do bem, e, acima de tudo, afastá-los de Deus para carregá-los para o inferno do qual são os provedores e recrutadores.
Compreende-se que eles se dirijam aos que estão no bom caminho e que estão perdidos para eles se persistirem nesse caminho; compreende-se a sedução e o simulacro do bem para atraí-los às suas redes; mas o que é incompreensível é que eles se dirijam aos que já lhes pertencem de corpo e alma para levá-los de volta a Deus e ao bem; ora, quem está mais em suas garras do que aqueles que renega e blasfema Deus, que mergulha no vício e na desordem das paixões? Já não está esse no caminho do inferno? Compreende-se que, seguro de sua presa, ele a excite a rezar a Deus, a submeter-se à sua vontade, a renunciar ao mal; que ele exalte aos olhos dele as delícias da vida dos bons Espíritos, e lhe pinte com horror a posição dos maus? Já se viu alguma vez um vendedor gabar a seus clientes a mercadoria do vizinho em detrimento da sua e incitá-los a ir à loja dele? Um recrutador depreciar a vida militar, e louvar o repouso da vida doméstica? Dizer aos recrutas que terão uma vida de fadigas e de privações; que têm dez chances em uma de ser mortos ou pelo menos perder os braços e as pernas?
Entretanto, é esse o papel estúpido que se faz o demônio representar, pois há um fato notório, é que em consequência das instruções emanadas do mundo invisível, veem-se todos os dias incrédulos e ateus levados de volta a Deus e rezarem com fervor, o que nunca tinham feito; pessoas viciosas trabalharem com ardor no seu aperfeiçoamento. Pretender que essa é a obra dos ardis do demônio é fazer dele um verdadeiro néscio. Ora, como não se trata aqui de uma suposição, mas de um resultado de experiência, e que contra um fato não há denegação possível, é preciso concluir daí ou que o demônio é um desastrado de primeiro grau, que não é nem tão ardiloso nem tão maligno quanto se pretende, e por conseguinte não é muito de se temer, visto que trabalha contra seus interesses, ou então que nem todas as manifestações são dele.
8. – “Eles fazem aceitar o erro sob todas as suas formas; é para obter esse resultado que a madeira, a pedra, as florestas e as fontes, o santuário dos ídolos, o pé das mesas, a mão das crianças, proferem oráculos.”
Qual é então, de acordo com isso, o valor destas palavras do Evangelho: “Derramarei do meu espírito sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão; os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos terão sonhos. – Naqueles dias, derramarei do meu espírito sobre meus servos e sobre minhas servas, e eles profetizarão.” (Atos dos Apóstolos, cap. II, v. 17, 18). Não é a predição da medianimidade dada a todo o mundo, mesmo às crianças, e que se realiza em nossos dias? Os Apóstolos lançaram o anátema sobre essa faculdade? Não; eles a anunciam como um favor de Deus, e não como a obra do demônio. Os teólogos atuais sabem, portanto, mais sobre esse ponto do que os Apóstolos? Não deveriam ver o dedo de Deus no cumprimento dessas palavras?
9. – “Por meio dessas operações da magia moderna vemos se reproduzirem entre nós as evocações e os oráculos, as consultas, as curas e os prestígios que ilustraram os templos dos ídolos e os antros das sibilas.”
Onde se veem as operações da magia nas evocações espíritas? Tempo houve em que se podia crer na sua eficácia, mas hoje em dia elas são ridículas; ninguém crê nelas, e o Espiritismo condena-as. Na época em que a magia florescia, tinha-se apenas uma ideia muito imperfeita sobre a natureza dos Espíritos que eram olhados como seres dotados de um poder sobre-humano; eram chamados para obter-se deles, mesmo ao preço da alma, os favores da sorte e da fortuna, a descoberta dos tesouros, a revelação do futuro, ou filtros. A magia, com o auxílio de seus sinais, fórmulas e operações cabalísticas, devia fornecer pretensos segredos para operar prodígios, coagir os Espíritos a porem-se a serviço dos homens e lhes satisfazerem os desejos. Hoje sabe-se que os Espíritos não são senão as almas dos homens; não são chamados a não ser para receber os conselhos dos bons, moralizar os imperfeitos, e para continuar as relações com os seres que nos são caros. Eis o que diz o Espiritismo a esse respeito.
10. – Não há nenhum meio de coagir um Espírito a vir contra sua vontade, se ele for vosso igual ou vosso superior em moralidade, porque não tendes nenhuma autoridade sobre ele; se ele for vosso inferior, vós o podeis, se for para seu bem, pois então outros Espíritos vos secundam. (Livro dos médiuns, cap. XXV.)
– A mais essencial de todas as disposições para as evocações é o recolhimento, quando se quer lidar com Espíritos sérios. Com a fé e o desejo do bem, é-se mais poderoso para evocar os Espíritos superiores. Elevando a alma, por alguns instantes de recolhimento no momento da evocação, é possível identificar-se com os bons Espíritos, e dispô-los a vir. (Livro dos médiuns, cap. XXV.)
– Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou repelir os Espíritos; a matéria não tem nenhuma ação sobre eles. Um bom Espírito nunca aconselha semelhantes absurdos. A virtude dos talismãs nunca existiu a não ser na imaginação das pessoas crédulas. (Livro dos médiuns, cap. XXV.)
– Não há fórmula sacramental para a evocação dos Espíritos. Todo aquele que pretenda estabelecer uma, pode corajosamente ser tachado de charlatanismo, pois para os Espíritos a forma não é nada. Todavia, a evocação deve ser feita sempre em nome de Deus. (Livro dos médiuns, cap. XVII.)
– Os Espíritos que marcam encontros em lugares lúgubres e fora de horas, são Espíritos que se divertem à custa dos que os escutam. É sempre inútil e muitas vezes perigoso ceder a tais sugestões; inútil porque só se ganha com isso o ser-se mistificado; perigoso, não pelo mal que os Espíritos podem fazer, mas pela influência que isso pode exercer sobre cérebros fracos. (Livro dos médiuns, cap. XXV.)
– Não há dias nem horas mais especialmente propícios às evocações; isso é completamente indiferente para os Espíritos, como tudo o que é material, e seria uma superstição crer nessa influência. Os momentos mais favoráveis são aqueles em que o evocador pode estar menos distraído por suas ocupações habituais; em que seu corpo e seu Espírito estão mais calmos. (Livro dos médiuns, cap. XXV.)
– A crítica malévola teve prazer em representar as comunicações espíritas como cercadas pelas práticas ridículas e supersticiosas da magia e da necromancia. Se aqueles que falam do Espiritismo sem o conhecer se tivessem dado ao trabalho de estudar aquilo de que querem falar, ter-se-iam poupado esforços de imaginação ou alegações que servem somente para provar sua ignorância ou sua má vontade. Para a edificação das pessoas alheias à ciência, diremos que não há, para se comunicar com os Espíritos, nem dias, nem horas, nem lugares que sejam mais propícios do que outros; que não é preciso, para evocá-los, nem fórmulas, nem palavras sacramentais ou cabalísticas; que não se precisa de nenhuma preparação nem de nenhuma iniciação; que o emprego de todo sinal ou objeto material, quer para atraí-los, quer para repeli-los, é sem efeito, e o pensamento basta; enfim, que os médiuns recebem as comunicações deles sem sair de seu estado normal, tão simples e naturalmente como se elas fossem ditadas por uma pessoa viva. Unicamente o charlatanismo poderia afetar maneiras excêntricas e acrescentar acessórios ridículos. (O que é o Espiritismo? cap. II, n0 49.)
– Em princípio, o futuro deve ser ocultado ao homem; é apenas em casos raros e excepcionais que Deus permite sua revelação. Se o homem conhecesse o futuro, negligenciaria o presente e não agiria com a mesma liberdade, porque seria dominado pelo pensamento de que, se uma coisa deve acontecer, ele não tem que se preocupar com isso, ou então procuraria entravá-lo. Deus não quis que assim fosse, a fim de que cada indivíduo concorresse para a realização das coisas, mesmo daquelas às quais ele gostaria de se opor. Deus permite a revelação do futuro quando esse conhecimento prévio deve facilitar a realização da coisa em vez de entravá-la, impelindo a agir diferentemente do que se teria feito sem isso. (Livro dos Espíritos, l. III, cap. X.)
– Os Espíritos não podem guiar nas pesquisas científicas e nas descobertas. A ciência é a obra do gênio; não se deve adquirir senão pelo trabalho, pois é unicamente pelo trabalho que o homem avança em seu caminho. Que mérito teria ele se lhe bastasse interrogar os Espíritos para saber tudo? Qualquer imbecil poderia tornar-se cientista a esse preço. O mesmo ocorre com as invenções e descobertas da indústria.
Quando chegou o tempo de uma descoberta, os Espíritos encarregados de dirigir sua marcha procuram o homem capaz de levá-la a bom termo, e inspiram-lhe as ideias necessárias, de maneira a deixar-lhe todo o mérito, pois essas ideias, é preciso que ele as elabore e as empregue. Isso acontece com todos os grandes trabalhos da inteligência humana. Os Espíritos deixam cada homem na sua esfera; daquele que é próprio apenas para cavar a terra, não farão o depositário dos segredos de Deus; mas saberão tirar da obscuridade o homem capaz de secundar seus desígnios. Não vos deixeis, portanto, arrastar pela curiosidade ou a ambição, numa via que não é o objetivo do Espiritismo, e que vos conduziria às mais ridículas mistificações. (Livro dos médiuns, cap. XXVI.)
– Os Espíritos não podem fazer descobrir os tesouros escondidos. Os Espíritos superiores não se ocupam dessas coisas; mas Espíritos zombeteiros frequentemente indicam tesouros que não existem, ou podem fazer ver um tesouro num lugar, ao passo que está no lugar oposto; e isso tem sua utilidade para mostrar que a verdadeira fortuna está no trabalho. Se a Providência destina riquezas escondidas a alguém, ele as encontrará naturalmente, e não de outra forma. (Livro dos médiuns, cap. XXVI.)
– O Espiritismo, esclarecendo-nos sobre as propriedades dos fluidos que são os agentes e os meios de ação do mundo invisível, e constituem uma das forças e uma das potências da natureza, nos dá a chave de uma quantidade de coisas inexplicadas e inexplicáveis por qualquer outro meio, e que passaram, nos tempos recuados, por prodígios. Ele revela, assim como o magnetismo, uma lei, se não desconhecida, ao menos mal compreendida; ou, melhor dizendo, conheciam-se os efeitos, pois eles se produziram em todos os tempos, mas não se conhecia a lei, e foi a ignorância dessa lei que engendrou a superstição. Conhecida essa lei, o maravilhoso desaparece, e os fenômenos entram na ordem das coisas naturais. Eis porque os espíritas não fazem mais milagres fazendo escrever os mortos ou girar uma mesa, do que o médico fazendo reviver um moribundo, ou o físico fazendo cair o raio. Aquele que pretendesse, com o auxílio desta ciência, fazer milagres, seria ou um ignorante da coisa, ou um impostor. (Livro dos médiuns, cap. II.)
– Certas pessoas fazem uma ideia muito falsa das evocações; há as que creem que elas consistem em fazer voltar os mortos com o aparato lúgubre do túmulo. É apenas nos romances, nos contos fantásticos de fantasmas e no teatro que se veem os mortos ressequidos sair de seus sepulcros, vestidos ridiculamente de mortalhas, e fazendo bater os ossos. O Espiritismo, que nunca fez milagres, não fez esse milagre mais do que outros, e nunca fez reviver um corpo morto; quando o corpo está na sepultura, está lá definitivamente; mas o ser espiritual, fluídico, inteligente, não foi para o túmulo com seu invólucro grosseiro; separou-se dele no momento da morte, e uma vez operada a separação, um não tem mais nada em comum com o outro. (O que é o Espiritismo? cap. II, n0 48.)
11. – Estendemo-nos sobre essas citações para mostrar que os princípios do Espiritismo não têm nenhuma relação com os da magia. Assim, não há Espíritos às ordens dos homens, não há meios de coagi-los, não há sinais ou fórmulas cabalísticos, não há descobertas de tesouros ou procedimentos para enriquecer, nada de milagres ou prodígios, não há adivinhações nem aparições fantásticas; nada enfim do que constitui o objetivo e os elementos essenciais da magia; não só o Espiritismo desaprova todas essas coisas, como demonstra sua impossibilidade e ineficácia. Não há portanto nenhuma analogia entre o fim e os meios da magia e os do Espiritismo; querer assimilá-los não pode ser devido senão à ignorância ou má fé; e como os princípios do Espiritismo não têm nada secreto, são formulados em termos claros e sem equívoco, o erro não poderia prevalecer.
Quanto aos fatos de curas, reconhecidos reais na pastoral citada precedentemente, o exemplo é mal escolhido para afastar das relações com os Espíritos. É um dos benefícios que mais tocam e que todos podem apreciar; poucas pessoas estarão dispostas a renunciar a isso, sobretudo depois de terem esgotado todos os outros meios, pelo temor de serem curados pelo diabo; mais de um, ao contrário, dirá que se o diabo o cura, faz uma boa ação. *
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* Querendo persuadir pessoas curadas pelos Espíritos de que o haviam sido pelo diabo, separou-se radicalmente da Igreja grande número dessas pessoas que não pensavam em deixá-la.
12.– “Quais são os agentes secretos desses fenômenos e os verdadeiros atores dessas cenas inexplicáveis? Os anjos não aceitariam esses papéis indignos, e não se prestariam a todos os caprichos de uma vã curiosidade.”
O autor quer falar das manifestações físicas dos Espíritos; na totalidade, há umas que seriam evidentemente pouco dignas de Espíritos superiores; e se substituírdes a palavra anjos por puros Espíritos, ou Espíritos superiores, tereis exatamente o que diz o Espiritismo. Mas não se poderia pôr na mesma linha as comunicações inteligentes pela escrita, a fala, a audição ou qualquer outro meio, que não são mais indignas dos bons Espíritos do que o são na terra dos homens mais eminentes, nem as aparições, as curas e uma quantidade de outras que os livros sagrados citam em profusão como sendo a realização dos anjos ou dos santos. Se então os anjos e os santos produziram outrora fenômenos semelhantes, por que não os produziriam hoje? Por que os mesmos feitos seriam hoje obra do demônio nas mãos de certas pessoas, ao passo que são considerados milagres santos em outras? Sustentar semelhante tese é abdicar de toda lógica.
O autor da pastoral está errado quando diz que esses fenômenos são inexplicáveis. Ao contrário, eles são hoje perfeitamente explicados, e é por isso que não são mais vistos como maravilhosos e sobrenaturais; e ainda que não o fossem, não seria mais lógico atribuí-los ao diabo, do que era outrora dar-lhe a honra de todos os efeitos naturais que não se compreendiam.
Por papéis indignos, é preciso entender os papéis ridículos e aqueles que consistem em fazer o mal; mas não se pode qualificar assim o dos Espíritos que fazem o bem, e reconduzem os homens a Deus e à virtude. Ora o Espiritismo diz expressamente que os papéis indignos não estão nas atribuições dos Espíritos superiores, assim como o provam os preceitos seguintes:
13.– Reconhece-se a qualidade dos Espíritos por sua linguagem; a dos Espíritos verdadeiramente bons e superiores é sempre digna, nobre, lógica, isenta de contradição; ela respira a sabedoria, a benevolência, a modéstia e a moral mais pura; é concisa e sem palavras inúteis. Nos Espíritos inferiores, ignorantes ou orgulhosos, o vazio das ideias é quase sempre compensado pela abundância das palavras. Todo pensamento evidentemente falso, toda máxima contrária à sã moral, todo conselho ridículo, toda expressão grosseira, trivial ou simplesmente frívola, enfim, toda marca de malevolência, de presunção ou de arrogância, são sinais incontestáveis de inferioridade num Espírito.
– Os Espíritos superiores ocupam-se apenas das comunicações inteligentes com vistas a nossa instrução; as manifestações físicas ou puramente materiais são mais especialmente atribuições dos Espíritos inferiores, vulgarmente designados sob o nome de Espíritos batedores; como entre nós, as proezas admiráveis são feitos de saltimbancos e não de cientistas. Seria absurdo pensar que os Espíritos um pouco elevados se divirtam exibindo-se. (O que é o Espiritismo? Cap. II, n0s 37, 38, 39, 40 e 60. – Ver também: Livro dos Espíritos, liv. II, cap. I: Diferentes ordens de Espíritos; escala espírita. Livro dos médiuns, 2a parte, cap. XXIV: Identidade dos Espíritos; Distinção dos bons e dos maus Espíritos.)
Qual é o homem de boa fé que pode ver nesses preceitos um papel indigno atribuído aos Espíritos elevados? Não só o Espiritismo não confunde os Espíritos, mas, enquanto se atribui aos demônios uma inteligência igual à dos anjos, ele constata, pela observação dos fatos, que os Espíritos inferiores são mais ou menos ignorantes, que seu horizonte moral é limitado, sua perspicácia restrita; que eles têm das coisas uma ideia muitas vezes falsa e incompleta, e são incapazes de resolver certas questões, o que os tornaria incapazes de fazer tudo o que se atribui aos demônios.
14.– “As almas dos mortos, que Deus proíbe consultar, permanecem na morada que sua justiça lhes designou, e elas não podem, sem sua permissão, pôr-se às ordens dos vivos.”
O Espiritismo diz também que elas não podem vir sem a permissão de Deus, mas ele é ainda bem mais rigoroso, pois diz que nenhum Espírito, bom ou mau, pode vir sem essa permissão, ao passo que a Igreja atribui aos demônios o poder de dispensá-la. Ele vai ainda mais longe, visto dizer que, mesmo com essa permissão, quando eles acorrem ao apelo dos vivos, não é para se porem às suas ordens.
O Espírito evocado vem voluntariamente, ou é coagido a isso? – Ele obedece à vontade de Deus, ou seja, à lei geral que rege o universo; ele julga se é útil vir, e ainda nisso está seu livre-arbítrio. O Espírito superior vem sempre que é chamado para um objetivo útil; só se recusa a responder nos meios de pessoas pouco sérias e que tratam a coisa como brincadeira. (Livro dos médiuns, cap. XXV.)
– O Espírito evocado pode se recusar a vir ao chamado que lhe é feito? – Perfeitamente; onde estaria seu livre-arbítrio sem isso? Credes que todos os seres do universo estejam às vossas ordens? E vós mesmos, credes que sois obrigados a responder a todos aqueles que pronunciam vosso nome? Quando digo que ele pode se recusar, entendo ao pedido do evocador, pois um Espírito inferior pode ser coagido a vir por um Espírito superior. (Livro dos médiuns, cap. XXV.)
Os espíritas estão tão convencidos de que não têm nenhum poder direto sobre os Espíritos, e nada podem obter deles sem a permissão de Deus, que, quando chamam um Espírito qualquer, dizem: Peço a Deus todo-poderoso que permita a um bom Espírito se comunicar comigo; peço também a meu anjo guardião para me assistir e afastar os maus Espíritos; ou então, quando se trata do chamado de um Espírito determinado: Peço a Deus todo-poderoso que permita ao Espírito de fulano se comunicar comigo. (Livro dos médiuns, cap. XVII, n0 203.)
15.– As acusações lançadas pela Igreja contra a prática das evocações não dizem portanto respeito ao Espiritismo, visto que elas se referem principalmente às operações da magia com a qual ele nada tem em comum; que ele condena nessas operações o que ela mesma condena; que ele não faz os bons Espíritos desempenharem um papel indigno deles, e, enfim, que ele declara nada pedir e nada obter sem a permissão de Deus.
Sem dúvida pode haver pessoas que abusam das evocações, que fazem disso um jogo, que as desviam de seu objetivo providencial para fazê-las servir a seus interesses pessoais, que, por ignorância, leviandade, orgulho ou cupidez, se afastam dos verdadeiros princípios da doutrina; mas o Espiritismo sério desautoriza-as, como a verdadeira religião desautoriza os falsos devotos e os excessos do fanatismo. Logo, não é lógico nem equitativo imputar ao Espiritismo em geral os abusos que ele condena, ou as faltas daqueles que não o compreendem. Antes de formular uma acusação, é preciso ver se ela acerta seu alvo. Diremos, portanto: A reprovação da Igreja cai sobre os charlatães, os exploradores, as práticas da magia e da feitiçaria; nisso, ela tem razão. Quando a crítica religiosa ou cética condena os abusos e estigmatiza o charlatanismo, faz destacar-se ainda melhor a pureza da sã doutrina que ela ajuda assim a se desembaraçar das más escórias; nisso ela facilita nossa tarefa. Seu erro é confundir o bem e o mal, por ignorância entre a maioria, por má fé em alguns; mas a distinção que ela não faz, outros fazem. Em todos os casos sua reprovação, à qual todo espírita sincero se associa no limite do que se aplica ao mal, não pode atingir a doutrina.
16.– “Os seres misteriosos que acorrem assim ao primeiro apelo do herético e do ímpio como do fiel, do crime como da inocência, não são nem os enviados de Deus, nem os apóstolos da verdade e da salvação, mas os sequazes do erro e do inferno.”
Assim, ao herético, ao ímpio, ao criminoso, Deus não permite que bons Espíritos venham tirá-los do erro para salvá-los da perdição eterna! Ele não lhes envia senão os sequazes do inferno para os afundar ainda mais no lodaçal! Pior, ele não envia à inocência senão seres perversos para pervertê-la! Não se encontra então entre os anjos, essas criaturas privilegiadas de Deus, nenhum ser suficientemente compassivo para vir socorrer essas almas perdidas? Para que as brilhantes qualidades de que são dotados, se não servem senão para seus gozos pessoais? São eles realmente bons se, mergulhados nas delícias da contemplação, veem essas almas no caminho do inferno, sem as vir desviar daí? Não é a imagem do rico egoísta que, tendo tudo em profusão, deixa sem compaixão o pobre morrer de fome à sua porta? Não é o egoísmo erigido em virtude e posto até aos pés do Eterno?
Vós vos espantais que os bons Espíritos vão ao herético e ao ímpio; esqueceis portanto esta fala do Cristo: “Não é aquele que está bem que precisa de médico.” Não veríeis as coisas de um ponto mais elevado do que os fariseus de seu tempo? E vós, se fordes chamado por um descrente, recusareis ir a ele para pô-lo no bom caminho? Os bons Espíritos fazem, então, o que vós faríeis; eles vão ao ímpio fazê-lo ouvir boas palavras. Em vez de jogar o anátema nas comunicações de além-túmulo, bendizei os caminhos do Senhor, e admirai sua onipotência e sua bondade infinita.
17. – Há, diz-se, os anjos guardiães; mas, quando esses anjos guardiães não se podem fazer ouvir pela voz misteriosa da consciência ou da inspiração, por que não empregariam eles meios de ação mais diretos e mais materiais, de natureza a impressionar os sentidos, já que os meios existem? Deus põe portanto esses meios, que são sua obra, visto que tudo vem dele e que nada ocorre sem sua permissão, à disposição unicamente dos maus Espíritos, ao passo que recusa aos bons servirem-se deles? De onde é preciso concluir que Deus dá aos demônios mais facilidades para perder os homens do que dá aos anjos guardiães para salvá-los.
Pois bem! o que os anjos guardiães não podem fazer, segundo a Igreja, os demônios fazem por eles; com a ajuda dessas mesmas comunicações ditas infernais, eles trazem de volta a Deus aqueles que o renegavam, e ao bem aqueles que estavam mergulhados no mal; eles nos dão o estranho espetáculo de milhões de homens que creem em Deus pelo poder do diabo, enquanto a Igreja fora incapaz de convertê-los. Quantos homens que nunca rezavam, rezam hoje com fervor, graças às instruções desses mesmos demônios! Quantos se veem que, de orgulhosos, egoístas e devassos, se tornaram humildes, caridosos e menos sensuais! E diz-se que é obra dos demônios! Se assim for, é preciso convir que o demônio lhes prestou maior serviço e os assistiu melhor do que os anjos. É preciso ter uma opinião bem pobre do julgamento dos homens neste século, para crer que eles possam aceitar cegamente tais ideias. Uma religião que faz sua pedra angular de semelhante doutrina, que se declara minada na base se lhe tirarem seus demônios, seu inferno, suas penas eternas e seu Deus sem compaixão, é uma religião que se suicida.
18.– Deus, diz-se, que enviou seu Cristo para salvar os homens, não provou seu amor por suas criaturas e as deixou sem proteção? Sem dúvida nenhuma, Cristo é o divino Messias, enviado para ensinar aos homens a verdade e mostrar-lhes o bom caminho; mas, desde então, contai o número daqueles que puderam ouvir sua palavra de verdade, quantos morreram e morrerão sem a conhecer, e, entre os que a conhecem, quantos há que a põem em prática! Por que Deus, em sua solicitude pela salvação de seus filhos, não lhes enviaria outros mensageiros, vindo à terra inteira, penetrando nos mais humildes redutos, na casa dos grandes e dos pequenos, dos sábios e dos ignorantes, dos incrédulos como dos crentes, ensinar a verdade aos que não a compreendem, acudir por seu ensino direto e múltiplo à insuficiência da propagação do Evangelho, e apressar assim o advento do reino de Deus? E quando esses mensageiros chegam em massas incontáveis, abrindo os olhos aos cegos, convertendo os ímpios, curando os doentes, consolando os aflitos a exemplo de Jesus, vós os repelis, repudiais o bem que eles fazem, dizendo que são os demônios! Tal é também a linguagem dos fariseus a respeito de Jesus, pois também eles diziam que ele fazia o bem pelo poder do diabo. O que lhes respondeu ele? “Reconhecei a árvore pelo fruto; uma má árvore não pode dar bons frutos.”
Mas para eles, os frutos produzidos por Jesus eram maus, porque ele vinha destruir os abusos e proclamar a liberdade que devia arruinar-lhes a autoridade; se ele tivesse vindo adular seu orgulho, sancionar suas prevaricações e apoiar seu poder, teria sido a seus olhos o Messias esperado pelos judeus. Ele era sozinho, pobre e fraco, fizeram-no perecer e acreditaram matar sua palavra; mas sua palavra era divina e sobreviveu-lhe. No entanto ela se propagou com lentidão, e após dezoito séculos, mal é conhecida pela décima parte do gênero humano, e cismas numerosos ocorreram no seio de seus próprios discípulos. É então que Deus, em sua misericórdia, envia os Espíritos para completá-la, pô-la ao alcance de todos, e espalhá-la por toda a terra. Mas os Espíritos não estão encarnados num único homem, cuja voz seria limitada; eles são incontáveis, vão a toda parte e não se pode apanhá-los, eis porque seu ensinamento se espalha com a rapidez do relâmpago; eles falam ao coração e à razão, eis porque são compreendidos pelos mais humildes.
19.– “Não é indigno de celestes mensageiros, dizeis vós, transmitirem suas instruções por um meio tão vulgar quanto o das mesas falantes? Não é ultrajá-los supor que eles se divertem com trivialidades e deixam sua brilhante morada para se pôr à disposição do primeiro que chega?”
Jesus não deixou a morada de seu Pai para nascer num estábulo? Onde vistes, aliás, que o Espiritismo atribuísse as coisas triviais a Espíritos superiores? Ele diz, ao contrário, que as coisas vulgares são o produto de Espíritos vulgares. Mas, por sua própria vulgaridade, elas impressionaram mais as imaginações; serviram para provar a existência do mundo espiritual e mostraram que esse mundo é completamente diferente do que se imaginara. Era o início; era simples como tudo o que está começando, mas a árvore saída de uma sementinha não deixa de estender, mais tarde, sua folhagem ao longe. Quem teria acreditado que da miserável manjedoura de Belém sairia um dia a palavra que devia agitar o mundo?
Sim, Cristo é o Messias divino; sim, sua palavra é a de verdade; sim, a religião fundada sobre essa palavra será inabalável, mas com a condição de seguir e de praticar seus sublimes ensinamentos, e de não fazer do Deus justo e bom que ele nos ensina a conhecer, um Deus parcial, vingativo e sem compaixão.
1.– A Igreja não nega absolutamente o fato das manifestações; ela admite-as todas, ao contrário, como se viu nas citações precedentes, mas atribui-as à intervenção exclusiva dos demônios. É erradamente que alguns evocam o Evangelho para proibi-las, pois o Evangelho não diz uma palavra sobre isso. O supremo argumento brandido é a proibição de Moisés. Eis em que termos se exprime a este respeito a pastoral citada nos artigos precedentes:
“Não é permitido colocar-se em relação com eles (os Espíritos), quer imediatamente, quer por intermédio daqueles que os invocam e os interrogam. A lei mosaica punia com a morte essas práticas detestáveis, correntes entre os gentios.” “Não vades encontrar os mágicos, está dito no livro do Levítico, e não dirijais aos adivinhos pergunta nenhuma, por medo de incorrer na mácula dirigindo-vos a eles.” (Cap. XIX, “v. 31.) – “Se um homem ou uma mulher tem um Espírito de Píton ou de adivinhação, que sejam punidos com a morte; serão lapidados, e seu sangue recairá sobre suas cabeças.” (Cap. XX, v. 27.) E no livro do Deuteronômio: “Que não haja entre vós ninguém que consulte os adivinhos, que observe os sonhos e os augúrios, ou que use de malefícios, sortilégios e encantamentos, ou que consulte aqueles que têm o Espírito de Píton e que praticam a adivinhação, ou que interrogam os mortos para saber a verdade; pois o Senhor tem em abominação todas essas coisas, e destruirá, à vossa chegada, as nações que cometem esses crimes.” (Cap. XVIII, v. 10, 11, 12.)
2. – É útil, para a inteligência do verdadeiro sentido das palavras de Moisés, relembrar o texto completo, um pouco abreviado nessa citação:
“Não vos afasteis de vosso Deus, para ir procurar os mágicos, e não consulteis os adivinhos, de medo de vos maculardes dirigindo-vos a eles. Eu sou o Senhor vosso Deus.” (Levítico, cap. XIX, v.31.)
“Se um homem ou uma mulher tem um Espírito de Píton, ou um espírito de adivinhação, que sejam punidos com a morte; serão lapidados, e seu sangue recairá sobre suas cabeças.” (Id., cap. XX, v. 27.)
“Quando tiverdes entrado no país que o Senhor vosso Deus vos dará, ficai muito atentos a não querer imitar as abominações desses povos; – e que não se encontre ninguém entre vós que pretenda purificar seu filho ou sua filha, fazendo-os passar pelo fogo, ou que consulte os adivinhos, ou que observe os sonhos e os augúrios, ou que use de malefícios, de sortilégios e encantamentos, ou que consulte aqueles que têm o espírito de Píton, e que se dedicam a adivinhar, ou que interrogam os mortos para aprender a verdade. – Pois o Senhor tem em abominação todas essas coisas, e ele exterminará todos esses povos à vossa entrada, por causa desses tipos de crimes que eles cometeram.” (Deuteronômio, cap. XVIII, v. 9, 10, 11 e 12.)
3. – Se a lei de Moisés deve ser rigorosamente observada sobre este ponto, ela o deve ser sobre todos os outros, pois por que ela seria boa no que se refere às evocações, e má em outras partes? É preciso ser coerente; se se reconhece que sua lei não está mais em harmonia com nossos costumes e nossa época para certas coisas, não há razão para que não ocorra o mesmo com a proibição de que se trata.
É preciso, aliás, se reportar aos motivos que provocaram essa proibição, motivos que tinham então sua razão de ser, mas que não mais existem seguramente hoje em dia. O legislador hebreu queria que seu povo rompesse com todos os costumes trazidos do Egito, onde aquele das evocações era usual e um motivo de abuso, como provam estas palavras de Isaías: “O Espírito do Egito se aniquilará nela, e derrubarei sua prudência; eles consultarão seus ídolos, seus adivinhos, seus pítons e seus mágicos.” (Cap. XIX, v. 3.)
Além disso, os israelitas não deviam contrair nenhuma aliança com as nações estrangeiras; ora, eles iam encontrar as mesmas práticas entre aquelas onde iam entrar e que deviam combater. Moisés precisou então, por política, inspirar ao povo hebreu aversão por todos seus costumes que tivessem tido pontos de contato se eles os tivessem assimilado. Para motivar essa aversão, era preciso apresentá-los como reprovados pelo próprio Deus; é por isso que ele disse: “O Senhor tem em abominação todas essas coisas, e ele destruirá, à vossa chegada, as nações que cometem esses crimes.”
4 .– A proibição de Moisés era tanto mais justificada quanto não se evocavam os mortos por respeito ou afeição a eles, nem com um sentimento de piedade; era um meio de adivinhação, da mesma maneira que os augúrios e os presságios, explorado pelo charlatanismo e a superstição. Por mais tenha feito, não conseguiu desenraizar esse hábito tornado objeto de tráfico, assim como o atestam as passagens seguintes do mesmo profeta:
“E quando eles vos disserem: Consultai os mágicos e os adivinhos que falam baixinho em seus encantamentos, respondei-lhes: “Cada povo não consulta seu Deus? E vai-se falar aos mortos do que diz respeito aos vivos?” (Isaías, cap. VIII, v. 19.)
“Sou eu que faço ver a falsidade dos prodígios da magia; que torno insensatos aqueles que se dedicam a adivinhar; que confundo o espírito dos sábios, e que provo ser loucura a sua vã ciência.” (Cap. XLIV, v. 25.)
“Que esses augúrios que estudam o céu, que contemplam os astros, e que contam os meses para tirar daí as predições que querem dar-vos do futuro, venham agora, e que eles vos salvem. – Eles se tornaram como a palha, o fogo os devorou; não poderão livrar suas almas das chamas ardentes; nem mesmo restará de seu abrasamento carvões com os quais se possa aquecer, nem fogo diante do qual se possa sentar. – Eis o que se tornarão todas essas coisas nas quais vós vos empregáveis com tanto trabalho: esses mercadores que traficaram convosco desde vossa juventude fugirão todos, um para um lado, o outro para o outro, sem que se encontre um único que vos tire de vossos males.” (Cap. XLVII, v. 13, 14, 15.)
Neste capítulo, Isaías dirige-se aos babilônios, sob a figura alegórica da “virgem filha de Babilônia, filha dos caldeus.” (Vers. 1.) Ele diz que os encantadores não impedirão a ruína de sua monarquia. No capítulo seguinte, ele se dirige diretamente aos israelitas.
“Vinde aqui, vós, filhos de uma adivinha, raça de um homem adúltero e de uma mulher prostituída. – De quem troçastes? Contra quem abristes a boca, e lançastes vossas línguas penetrantes? Não sois filhos pérfidos e rebentos bastardos, – vós que procurais vosso consolo em vossos deuses debaixo de todas as árvores carregadas de folhagens, que sacrificais vossas criancinhas nas torrentes sob as rochas proeminentes? – Pusestes vossa confiança nas pedras da torrente; espalhastes licores para venerá-las; ofereceste-lhes sacrifícios. Depois disso, minha indignação não se inflamará?” (Cap. LVII, v. 3, 4, 5, 6.)
Estas palavras são inequívocas; provam claramente que, naquele tempo, as evocações tinham por finalidade a adivinhação, e que se fazia comércio delas; estavam associadas às práticas da magia e da bruxaria, e mesmo acompanhadas de sacrifícios humanos. Moisés tinha portanto razão de proibir essas coisas, e de dizer que Deus as tinha em abominação. Essas práticas supersticiosas se perpetuaram até a Idade Média; mas hoje a razão lhes fez justiça, e o Espiritismo veio mostrar a finalidade exclusivamente moral, consoladora e religiosa das relações de além-túmulo; uma vez que os espíritas não “sacrificam as criancinhas e não espalham licores para venerar os deuses,” não interrogam nem os astros, nem os mortos, nem os augúrios para conhecer o futuro que Deus sabiamente escondeu aos homens; repudiam todo tráfico da faculdade que alguns receberam de comunicar-se com os Espíritos; não são movidos nem pela curiosidade, nem pela cupidez, mas por um sentimento piedoso e unicamente pelo desejo de se instruir, de se aperfeiçoar e de aliviar as almas sofredoras; a proibição de Moisés não lhes diz respeito de maneira nenhuma; é o que teriam visto aqueles que a invocam contra eles, se tivessem aprofundado melhor o sentido das palavras bíblicas; teriam reconhecido que não existe nenhuma analogia entre o que ocorria entre os hebreus e os princípios do Espiritismo; muito mais: que o Espiritismo condena precisamente o que motivava a proibição de Moisés; mas, cegos pelo desejo de encontrar um argumento contra as ideias novas, eles não se aperceberam de que esse argumento não se sustenta.
A lei civil atual pune todos os abusos que Moisés queria reprimir. Se Moisés pronunciou o supremo suplício contra os delinquentes, é porque precisava de meios rigorosos para governar aquele povo indisciplinado; assim a pena de morte é prodigada em sua legislação; não havia de resto grande escolha em seus meios de repressão; não havia prisões, nem casas de correção no deserto, e seu povo não era de natureza a temer penas puramente disciplinares; ele não podia graduar sua penalidade como se faz em nossos dias. É portanto injustamente que se considera a severidade do castigo para provar o grau de culpa da evocação dos mortos. Seria preciso por respeito à lei de Moisés manter a pena capital para todos os casos em que ele a aplicava? Por que, aliás, se faz reviver com tanta insistência este artigo, ao passo que não se fala do começo do capítulo que proíbe aos padres possuir os bens da terra, e ter parte em qualquer herança, porque o Senhor é ele próprio sua herança? (Deuteronômio, cap. XXVIII, v. 1 e 2.)
5. – Há duas partes distintas na lei de Moisés: a lei de Deus propriamente dita, promulgada no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar apropriada aos costumes e ao caráter do povo; uma é invariável, a outra se modifica de acordo com os tempos, e não pode vir ao pensamento de ninguém que possamos ser governados pelos mesmos meios que os hebreus no deserto, como também os capitulares de Carlos Magno não se poderiam aplicar à França do século dezenove. Quem sonharia, por exemplo, fazer reviver hoje este artigo da lei mosaica: “Se um boi ferir com seu chifre um homem ou uma mulher, e eles morrerem por isso, o boi será lapidado, e não se comerá sua carne; mas o dono do boi será julgado inocente.” (Êxodo, cap. XXI, v. 28 e seg.)
Este artigo que nos parece tão absurdo, não tinha porém por objeto punir o boi e absolver seu dono; ele equivalia simplesmente ao confisco do animal, causa do acidente, para obrigar o proprietário a ser mais vigilante. A perda do boi era a punição do dono, punição que devia ser bastante sensível para um povo pastor, para que não fosse necessário infligir-lhe outra; mas ela não devia beneficiar ninguém, por isso era proibido comer-lhe a carne. Outros artigos estipulam o caso em que o dono é responsável.
Tudo tinha sua razão de ser na legislação de Moisés, pois tudo está aí previsto até nos menores detalhes; mas a forma assim como o fundo eram segundo as circunstâncias em que ele se achava. Decerto, se Moisés voltasse hoje para dar um código a uma nação civilizada da Europa, não lhe daria o dos hebreus.
6. – A isso objeta-se que todas as leis de Moisés são editadas em nome de Deus, assim como a do Sinai. Se todas são julgadas de fonte divina, por que os mandamentos se limitam ao Decálogo? É portanto porque se diferenciaram; se todas emanam de Deus, todas são igualmente obrigatórias; por que não são todas observadas? Por que, além disso, não se conservou a circuncisão que Jesus sofreu e não aboliu? Esquece-se que todos os legisladores antigos, para dar mais autoridade às suas leis, disseram que elas provinham de uma divindade. Moisés tinha mais do qualquer outro necessidade desse apoio, por causa do caráter de seu povo; se, apesar disso, teve tanta dificuldade para se fazer obedecer, teria sido bem pior, se as tivesse promulgado em seu próprio nome.
Não veio Jesus modificar a lei mosaica, e não é sua lei o código dos cristãos? Não disse ele: “Aprendestes que foi dito aos antigos tal e qual coisa, e eu vos digo tal outra coisa?” Mas tocou ele na lei do Sinai? De modo nenhum; ele a sanciona, e toda sua doutrina moral não é senão o desenvolvimento daquela. Ora, ele não fala em nenhum lugar da proibição de evocar os mortos. Era porém uma questão bastante grave, para que ele a tivesse omitido em suas instruções, enquanto tratou de outras mais secundárias.
7. – Em resumo, trata-se de saber se a Igreja põe a lei mosaica acima da lei evangélica, dito de outro modo, se ela é mais judia do que cristã. Deve-se mesmo observar que, de todas as religiões, aquela que menos oposição fez ao Espiritismo é a judia, e que ela não invocou contra as relações com os mortos a lei de Moisés sobre a qual se apoiam as seitas cristãs.
8. – Outra contradição. Se Moisés proibiu evocar os Espíritos dos mortos, é portanto porque esses Espíritos podem vir, de outro modo sua proibição teria sido inútil. Se eles podiam vir no tempo dele, ainda o podem hoje; se são os Espíritos dos mortos, então não são exclusivamente demônios. De resto, Moisés não fala absolutamente destes últimos.
Logo, é evidente que não se poderia logicamente apoiar-se na lei de Moisés nesta circunstância, pelo duplo motivo de que ela não rege o Cristianismo, e não é apropriada aos costumes da nossa época. Mas, supondo-lhetoda a autoridade que alguns lhe concedem, ela não pode, assim como vimos, aplicar-se ao Espiritismo.
Moisés, é verdade, engloba a interrogação dos mortos na sua proibição; mas é apenas de maneira secundária, e como acessório das práticas da magia. A própria palavra interrogar posta ao lado dos adivinhos e dos augúrios prova que, entre os hebreus, as evocações eram um meio de adivinhação; ora, os espíritas não evocam os mortos para obter deles revelações ilícitas, mas para receber sábios conselhos e obter alívio para os que sofrem. Decerto, se os hebreus se tivessem servido das comunicações de além-túmulo unicamente com esse objetivo, longe de proibi-las, Moisés as teria encorajado, porque elas teriam tornado seu povo mais dócil.
9. – Se alguns críticos jocosos ou mal intencionados se deleitaram em apresentar as reuniões espíritas como assembleias de feiticeiros e de necromantes, e os médiuns como adivinhos; se alguns charlatães misturam esse nome a práticas ridículas que ele desaprova, bastante gente conhece perfeitamente o caráter essencialmente moral e grave das reuniões do espiritismo sério; a doutrina escrita para toda gente, protesta suficientemente contra os abusos de todo gênero para que a calúnia recaia sobre quem a merece.
10. – A evocação, diz-se, é uma falta de respeito pelos mortos cuja cinza não se deve perturbar. Quem diz isso? Os adversários de dois campos opostos que se dão as mãos: os incrédulos que não creem nas almas, e aqueles que, crendo, pretendem que elas não podem vir e que unicamente o demônio se apresenta.
Quando a evocação é feita religiosamente e com recolhimento; quando os Espíritos são chamados, não por curiosidade, mas por um sentimento de afeição e de simpatia, e com o desejo sincero de se instruir e de se tornar melhor, não vemos o que haveria de mais desrespeitoso em chamar as pessoas após sua morte do que enquanto vivas. Mas há outra resposta peremptória a esta objeção, é que os Espíritos vêm livremente e não por coerção; que eles vêm mesmo espontaneamente sem ser chamados; que eles testemunham sua satisfação de se comunicar com os homens, e se queixam com frequência do esquecimento em que por vezes são deixados. Se fossem perturbados em sua quietude ou ficassem descontentes com nosso chamado eles o diriam, ou não viriam. Visto que são livres, quando vêm, é que isso lhes convém.
11. – Alega-se outra razão: “As almas, diz-se, permanecem na morada que a justiça de Deus lhes designou, ou seja, no inferno ou no paraíso;” assim aquelas que estão no inferno não podem sair de lá, embora a esse respeito toda liberdade seja deixada aos demônios; aquelas que estão no paraíso estão inteiramente na sua beatitude; estão demasiado acima dos mortais para se ocuparem deles, e demasiado felizes para voltarem a esta terra de miséria se interessar pelos parentes e amigos que aqui deixaram. Elas são, portanto, como esses ricos que afastam a vista dos pobres, de medo que isso lhes perturbe a digestão? Se assim fosse, elas seriam pouco dignas da felicidade suprema, que nesse caso seria o prêmio do egoísmo. Restam aquelas que estão no purgatório; mas essas são sofredoras e têm de pensar em sua salvação antes de tudo; portanto, não podendo vir nem umas nem outras, unicamente o diabo vem em lugar delas. Se elas não podem vir, não se deve temer perturbar-lhes o repouso.
12. – Mas aqui se apresenta outra dificuldade. Se as almas que estão na beatitude não podem deixar sua morada afortunada para vir em socorro dos mortais, por que a Igreja invoca a assistência dos santos, que devem gozar da maior soma possível de beatitude? Por que diz ela aos fiéis para invocá-los nas doenças, aflições, e para se preservar dos flagelos? Por que, segundo ela, os santos, a própria Virgem, vêm mostrar-se aos homens e fazer milagres? Portanto, eles deixam o céu para vir à terra. Se aqueles que estão no mais alto dos céus podem deixá-lo, por que os que são menos elevados não o poderiam?
13. – Que os incrédulos neguem a manifestação das almas, isso se concebe visto que não creem na alma; mas o que é estranho é ver aqueles cujas crenças repousam sobre sua existência e seu futuro, se encarniçarem contra os meios de provar que ela existe, e esforçarem-se por demonstrar que isso é impossível. Pareceria natural, ao contrário, que aqueles que mais têm interesse na sua existência devessem acolher com alegria, e como um benefício da Providência, os meios de confundir os negadores por provas irrefutáveis, visto que são os negadores da religião. Eles deploram sem cessar a invasão da incredulidade que dizima o rebanho dos fiéis, e quando o meio mais poderoso de combatê-la se apresenta, eles o repelem com mais obstinação do que os próprios incrédulos. Depois, quando as provas transbordam a ponto de não deixar nenhuma dúvida, recorre-se, como argumento supremo, à proibição de se ocupar disso, e para justificá-la vai-se buscar um artigo da lei de Moisés, com que ninguém nem sonhava, e onde se quer ver, por toda força, uma aplicação que não existe. Fica-se tão contente com esta descoberta que não se percebe que esse artigo é uma justificação da doutrina espírita.
14. – Todos os motivos alegados contra as relações com os Espíritos não podem resistir a um exame sério; da obstinação posta nisso, no entanto, pode-se inferir que a essa questão se vincula um grande interesse, sem isso não haveria tanta insistência. A ver essa cruzada de todos os cultos contra as manifestações, dir-se-ia que eles as temem. O verdadeiro motivo poderia bem ser o temor de que os Espíritos, muito clarividentes, viessem esclarecer os homens sobre os pontos que se faz questão de deixar na sombra, e fazer-lhes conhecer exatamente o que ocorre no outro mundo e as verdadeiras condições para ser ali feliz ou infeliz. É por isso que, assim como se diz a uma criança: “Não vás lá, há um lobisomem;” diz-se aos homens: “Não chameis os Espíritos, é o diabo.” Mas por mais que se faça, se proibirem os homens de chamar os Espíritos, não impedirão os Espíritos de vir aos homens tirar a lâmpada de sob o alqueire.
O culto que estiver na verdade absoluta não terá nada a temer da luz, pois a luz fará sobressair a verdade, e o demônio não poderia prevalecer contra a verdade.
15. – Repelir as comunicações de além-túmulo é rejeitar o poderoso meio de instrução que resulta para si mesmo da iniciação à vida futura, e dos exemplos que elas nos fornecem. Ensinando-nos a experiência, além disso, o bem que se pode fazer afastando do mal os Espíritos imperfeitos, ajudando os que sofrem a se libertar da matéria e a se melhorar, proibi-las é privar almas infelizes da assistência que lhes podemos dar. As seguintes palavras de um Espírito resumem admiravelmente as consequências da evocação praticada com um objetivo caridoso:
“Cada Espírito sofredor e queixoso vos contará a causa de sua queda, os arrastamentos a que sucumbiu; ele vos falará de suas esperanças, seus combates, seus terrores; ele vos contará seus remorsos, suas dores, seus desesperos; ele vos mostrará Deus, justamente irritado, punindo o culpado com toda a severidade de sua justiça.
Escutando-o, ficareis tomados de compaixão por ele e de temor por vós mesmos; seguindo-o em suas queixas, vereis Deus não o perdendo de vista, aguardando o pecador arrependido, estendendo-lhe os braços tão logo ele tente avançar. Vereis os progressos do culpado, para os quais tereis a felicidade e a glória de ter contribuído; vós os acompanhareis com solicitude, como o cirurgião acompanha os progressos do ferimento que ele trata diariamente.” (Bordeaux, 1861.)